O céu e o céu de Suely


O céu pode ser o único lugar aonde se desejaria ir para sempre. Um ir para ficar. Ir é infinito, atemporal, cheio de som e fúria; é sair em busca de algo reconhecido ou não, que sempre estará naquela direção.

Ir é jamais voltar do mesmo jeito. São talentos e arte de pessoas que se jogam, se lançam, pulam e quicam. Loucos, poetas, amantes são os que conhecemos, mas não há perfil dessa gente, a cada momento, o próprio céu se surpreende.

O céu é a própria esperança. Talvez não haja diamantes, mas há o azul.

A estrada que sai da tela se dilui no chão nordestino, quebrado pelo sol. Porém, mais do que o sol, há o céu.

Surpresa nem o céu teve perante o novo longa-metragem de Karim Aïnouz, O céu de Suely. Este segundo filme da carreira do diretor apresenta ritmo contrário se compararmos ao do primeiro, embora seja ainda delicado, certeiro, sincero.

Foi este o único filme brasileiro que participou da 63ª edição do Festival de Cinema de Veneza e estreou no Festival do Rio 2006, na mostra Première Brasil, ganhando o prêmio de melhor filme, melhor atriz - para a protagonista Hermila Guedes - e direção.

Nascido no Ceará, em Fortaleza, Karim Aïnouz, 40, é um dos nomes mais interessantes do atual cinema brasileiro. Formado em Arquitetura pela Universidade de Brasília, fez mestrado em História do Cinema na Universidade de Nova Iorque. Aïnouz já era um reconhecido e premiado curta-metragista quando seu primeiro longa-metragem foi às telas, em 2002: a obra-de-arte Madame Satã. Um filme poesia-faca cortante, sobre a vida do malandro da Lapa, região boêmia do Rio de Janeiro nos anos 1930.

Em 2004, durante sua residência em Berlim como bolsista do Programa de Artistas do DAAD (Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico), Karim Aïnouz desenvolveu o roteiro de O céu de Suely, cuja escritura foi partilhada com Felipe Bragança e Maurício Zacharias.

Mas, que céu é o de Suely? A história apresenta Hermila, jovem nordestina que retorna de São Paulo, com o filho recém-nascido, para a casa de sua família, no interior do Ceará. Ela espera a chegada do marido, que a abandona. Sozinha, busca recriar sua vida, ou seja, passa a buscar o céu.

Filme dedicado a duas mulheres - mãe e avó do diretor -, é coerentemente uma obra de fortes personagens femininos, que lhe são centrais e definidores da narrativa. Trata-se de uma história essencialmente sobre o feminino. Como temática principal, a mulher que rifa o próprio corpo. Não uma rifa qualquer, porém para buscar o seu ponto de transição, um tema, aliás, que não soa original, pois já fora tratado no curta A Rifa – um dos episódios de Boccacio '70 (1962) -- , dirigido por Vittorio de Sicca, e estrelado por Sophia Loren, com roteiro do neo-realista Cesare Zavattini.

Há na narrativa uma abordagem que não permite interpretação dos personagens. O filme não busca expressar um julgamento ou defender um ponto de vista. É espaço de uma exposição imparcial, dissertativa, em que não há partido a defender. Entretanto, poderíamos ter mais alguns episódios sobre as conseqüências do ato de rifar o próprio corpo, porque assim se evidenciaria a maior coragem e a luta de Hermila.

Parece-nos ser esta uma escolha consciente, referente à linguagem que Aïnouz experimenta. Evidenciando um cinema que mostra a essência de um olhar, olhar feito do que é o fato, e pronto, não da conseqüência dos atos. Torcemos por Hermila, ela nos conquista. Queremos que ela vá e se encontre, se reinvente. Esse território da reinvenção é o tema.

Os personagens adotam os nomes de seus intérpretes, e nos perguntarmos que significado isto incita. O elenco, propositadamente, é composto por atores nordestinos e desconhecidos do grande público. São atores que se mostram, ao menos, em um de seus primeiros papéis, atores e personagens inaugurais, nesse sentido. Trazem eles uma marca original própria, para contar a história da conquista de uma mulher: a atriz e a personagem que se encontram no mesmo céu, não surpreendentemente sob o mesmo nome.

Há também a lentidão, aparentemente provocada pelo calor no chão da terra nordestina. Lentidão da calma, do ritmo de quem sabe que não adianta correr porque pouco há para alcançar, poucas novas chegarão. Há, portanto, o imperativo verbo de "ir além". E Hermila vai.

O filme narra o momento "antes do céu". Madame Satã também fora o antes do mito, através de um receptivo olhar que o cineasta imprimiu e arriscou. Estes dois primeiros longa-metragens, de temática e ritmo quase antitéticos entre si, não caem na obviedade de trazerem a narrativa do "depois". Arriscamos pensar: é um cinema que fala das origens dos acontecimentos, renegando a volátil aparência inicial das coisas.

Na última cena, ápice escancarado de um clímax de que ficamos à espera, há a estrada que sai da tela, diluindo-se com o chão nordestino, quebrado pelo sol.

Porém, mais do que o sol, há o céu. E Hermila está além.

O Céu de Suely
Brasil, 2006
Drama - 90 minutos
Em circuito, no Brasil: 17 novembro de 2006

Direção: Karim Aïnouz
Roteiro: Karim Aïnouz, Felipe Bragança, Maurício Zacharias
Elenco: Hermila Guedes, Maria Menezes, Zezita Matos, João Miguel, Georgina Castro, Mateus Alves e Gerkson Carlos
Produtores: Walter Salles e Maurício Andrade Ramos
Uma produção VideoFilmes. Co-produção da Celluloid Dreams (França), ShotGun Pictures(Alemanha), Fado Filmes(Portugal)

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