John Donne & Anne More
John Donne nasceu em Londres no dia 22 de janeiro de 1572. Filho de uma abastada família católica(algo inusitado na Inglaterra do século XVII), teve uma educação católica rígida, herdou fortuna quando jovem e a gastou com mulheres, livros, teatro e viagens. Estudou Direito e começou carrreira como advogado, chegando a fazer parte do parlamento da Rainha Elizabeth I. E quase se tornou bispo pouco antes de morrer em 31 de março de 1631, em Londres. Por essa época, Anne More já havia falecido.
Anne era a jovem com quem Donne havia se casado secretamente em 1601, quando ela contava 17 anos. Um romance secreto. O pai de Anne, Sir George More - homem importante na época - quando descobriu a rebeldia da filha, não perdoou: mandou prender Donne e dois amigos seus que o ajudaram como cúmplices para o segredo do romance. Depois do casamento secreto, sua carreira pública começou a fracassar. E claro que isso foi uma escolha.
A família crescia. Sem o dote da esposa, as dificuldades amargavam. Foram morar com uma prima de Anne e eram auxiliados por amigos. Em 1609, o pai de Anne, vendo que não havia jeito mesmo, perdoa os dois. E paga o dote da filha.
Nos anos seguintes, quando tudo parecia voltar aos eixos, Donne se dedica mais a poesia. Escreve textos anticatólicos. “Poemas Divinos” e “Biathanatos”, em prosa, são desse período. Defende que o suicídio não é pecado. Ainda divulgando idéias anticatólicas, Donne publicou os poemas: “Pseudo-Martyr” e “Ignatius his Conclave” - uma declaração pública de renúncia ao catolicismo. “Pseudo-Martyr” referia-se aos católicos que faziam voto de obediência e louvor ao rei James I, sem fidelidade ao Papa romano. Em 1607, o rei insistiu para que Donne recebesse as ordens Anglicanas, mas o poeta se recusou. Entretanto, em 1615, Donne acaba se tornando Capelão Real. E reconhecido como um dos maiores oradores de sua época.
As coisas iam bem. A carreira eclesiástica era promissora. Nesse bom momento, foi quando Anne morreu após o parto do vigésimo filho do casal - que também não sobrevivera. Era 1617. Com a morte do filho e da esposa tão jovem, tinha 33 anos, Donne escreve dezessete sonetos sagrados.
A fase dos versos românticos havia chegado ao fim.
Uma fase que gerou essas duas obras magníficas, sensuais e pungentes. Expressando uma anima e um vigor de vida que a maravilhosa tradução de Augusto de Campos soube tão bem preservar em nossa língua.
Que mais belo existe além da poesia do corpo? Esse corpo vasto de sentido poético:
Full nakedness ! All joys are due to thee ;
As souls unbodied, bodies unclothed must be
To taste whole joys.
Ou em "The Ecstasy", quando diz o poeta:
To'our bodies turn we then, that so
Weak men on love reveal'd may look;
Love's mysteries in souls do grow,
But yet the body is his book.
And if some lover, such as we,
Have heard this dialogue of one,
Let him still mark us, he shall see
Small change, when we'are to bodies gone.
JOY, JOY Forever... Um corpo só deveria guardar a sua alegria.
ELEGY XX. TO HIS MISTRESS GOING TO BED
Come, madam, come, all rest my powers defy ;
Until I labour, I in labour lie.
The foe ofttimes, having the foe in sight,
Is tired with standing, though he never fight.
Off with that girdle, like heaven's zone glittering,
But a far fairer world encompassing.
Unpin that spangled breast-plate, which you wear,
That th' eyes of busy fools may be stopp'd there.
Unlace yourself, for that harmonious chime
Tells me from you that now it is bed-time.
Off with that happy busk, which I envy,
That still can be, and still can stand so nigh.
Your gown going off such beauteous state reveals,
As when from flowery meads th' hill's shadow steals.
Off with your wiry coronet, and show
The hairy diadems which on you do grow.
Off with your hose and shoes ; then softly tread
In this love's hallow'd temple, this soft bed.
In such white robes heaven's angels used to be
Revealed to men ; thou, angel, bring'st with thee
A heaven-like Mahomet's paradise ; and though
Ill spirits walk in white, we easily know
By this these angels from an evil sprite ;
Those set our hairs, but these our flesh upright.
Licence my roving hands, and let them go
Before, behind, between, above, below.
O, my America, my Newfoundland,
My kingdom, safest when with one man mann'd,
My mine of precious stones, my empery ;
How am I blest in thus discovering thee !
To enter in these bonds, is to be free ;
Then, where my hand is set, my soul shall be.
Full nakedness ! All joys are due to thee ;
As souls unbodied, bodies unclothed must be
To taste whole joys. Gems which you women use
Are like Atlanta's ball cast in men's views ;
That, when a fool's eye lighteth on a gem,
His earthly soul might court that, not them.
Like pictures, or like books' gay coverings made
For laymen, are all women thus array'd.
Themselves are only mystic books, which we
Whom their imputed grace will dignify
Must see reveal'd. Then, since that I may know,
As liberally as to thy midwife show
Thyself ; cast all, yea, this white linen hence ;
There is no penance due to innocence :
To teach thee, I am naked first ; why then,
What needst thou have more covering than a man?
Elegia: indo para o leito
Vem, Dama, vem que eu desafio a paz;
Até que eu lute, em luta o corpo jaz.
Como o inimigo diante do inimigo,
Canso-me de esperar se nunca brigo.
Solta esse cinto sideral que vela,
Céu cintilante, uma área ainda mais bela.
Desata esse corpete constelado,
Feito para deter o olhar ousado.
Entrega-te ao torpor que se derrama
De ti a mim, dizendo: hora da cama.
Tira o espartilho, quero descoberto
O que ele guarda quieto, tão de perto.
O corpo que de tuas saias sai
É um campo em flor quando a sombra se esvai.
Arranca essa grinalda armada e deixa
Que cresça o diadema da madeixa.
Tira os sapatos e entra sem receio
Nesse templo de amor que é o nosso leito.
Os anjos mostram-se num branco véu
Aos homens. Tu, meu anjo, és como o Céu
De Maomé. E se no branco têm contigo
Semelhança os espíritos, distingo:
O que o meu Anjo branco põe não é
O cabelo mas sim a carne em pé.
Deixa que minha mão errante adentre.
Atrás, na frente, em cima, em baixo, entre.
Minha América! Minha terra a vista,
Reino de paz, se um homem só a conquista,
Minha Mina preciosa, meu império,
Feliz de quem penetre o teu mistério!
Liberto-me ficando teu escravo;
Onde cai minha mão, meu selo gravo.
Nudez total! Todo o prazer provém
De um corpo (como a alma sem corpo) sem
Vestes. As jóias que a mulher ostenta
São como as bolas de ouro de Atalanta:
O olho do tolo que uma gema inflama
Ilude-se com ela e perde a dama.
Como encadernação vistosa, feita
Para iletrados a mulher se enfeita;
Mas ela é um livro místico e somente
A alguns (a que tal graça se consente)
É dado lê-la. Eu sou um que sabe;
Como se diante da parteira, abre-
Te: atira, sim, o linho branco fora,
Nem penitência nem decência agora.
Para ensinar-te eu me desnudo antes:
A coberta de um homem te é bastante.
tradução Augusto de Campos
The Ecstasy
Where, like a pillow on a bed
A pregnant bank swell'd up to rest
The violet's reclining head,
Sat we two, one another's best.
Our hands were firmly cemented
With a fast balm, which thence did spring;
Our eye-beams twisted, and did thread
Our eyes upon one double string;
So to'intergraft our hands, as yet
Was all the means to make us one,
And pictures in our eyes to get
Was all our propagation.
As 'twixt two equal armies fate
Suspends uncertain victory,
Our souls (which to advance their state
Were gone out) hung 'twixt her and me.
And whilst our souls negotiate there,
We like sepulchral statues lay;
All day, the same our postures were,
And we said nothing, all the day.
If any, so by love refin'd
That he soul's language understood,
And by good love were grown all mind,
Within convenient distance stood,
He (though he knew not which soul spake,
Because both meant, both spake the same)
Might thence a new concoction take
And part far purer than he came.
This ecstasy doth unperplex,
We said, and tell us what we love;
We see by this it was not sex,
We see we saw not what did move;
But as all several souls contain
Mixture of things, they know not what,
Love these mix'd souls doth mix again
And makes both one, each this and that.
A single violet transplant,
The strength, the colour, and the size,
(All which before was poor and scant)
Redoubles still, and multiplies.
When love with one another so
Interinanimates two souls,
That abler soul, which thence doth flow,
Defects of loneliness controls.
We then, who are this new soul, know
Of what we are compos'd and made,
For th' atomies of which we grow
Are souls. whom no change can invade.
But oh alas, so long, so far,
Our bodies why do we forbear?
They'are ours, though they'are not we; we are
The intelligences, they the spheres.
We owe them thanks, because they thus
Did us, to us, at first convey,
Yielded their senses' force to us,
Nor are dross to us, but allay.
On man heaven's influence works not so,
But that it first imprints the air;
So soul into the soul may flow,
Though it to body first repair.
As our blood labors to beget
Spirits, as like souls as it can,
Because such fingers need to knit
That subtle knot which makes us man,
So must pure lovers' souls descend
T' affections, and to faculties,
Which sense may reach and apprehend,
Else a great prince in prison lies.
To'our bodies turn we then, that so
Weak men on love reveal'd may look;
Love's mysteries in souls do grow,
But yet the body is his book.
And if some lover, such as we,
Have heard this dialogue of one,
Let him still mark us, he shall see
Small change, when we'are to bodies gone.
O Êxtase
Onde, qual almofada sobre o leito,
A areia grávida inchou para apoiar
A inclinada cabeça da violeta,
Nós nos sentamos, olhar contra olhar.
Nossas mãos duramente cimentadas
No firme bálsamo que delas vem,
Nossas vistas trançadas e tecendo
Os olhos em um duplo filamento;
Enxertar mão em mão é até agora
Nossa única forma de atadura
E modelar nos olhos as figuras
A nossa única propagação.
Como entre dois exércitos iguais,
Na incerteza, o Acaso se suspende,
Nossas almas (dos corpos apartadas
Por antecipação) entre ambos pendem.
E enquanto alma com alma negocia,
Estátuas sepulcrais ali quedamos
Todo o dia na mesma posição,
Sem mínima palavra, todo o dia.
Se alguém - pelo amor tão refinado
Que entendesse das almas a linguagem,
E por virtude desse amor tornado
Só pensamento - a elas se chegasse,
Pudera (sem saber que alma falava
Pois ambas eram uma só palavras),
Nova sublimação tomar do instante
E retornar mais puro do que antes.
Nosso Êxtase - dizemos - nos dá nexo
E nos mostra do amor o objectivo,
Vemos agora que não foi o sexo,
Vemos que não soubemos o motivo.
Mas que assim como as almas são misturas
Ignoradas, o amor reamalgama
A misturada alma de quem ama,
Compondo duas numa e uma em duas.
Transplanta a violeta solitária:
A força, a cor, a forma, tudo o que era
Até aqui degenerado e raro
Ora se multiplica e regenera.
Pois quando o amor assim uma na outra
Interanimou duas almas,
A alma melhor que dessas duas brota
A magra solidão derrota,
E nós que somos essa alma jovem,
Nossa composição já conhecemos
Por isto: os átomos de que nascemos
São almas que não mais se movem.
Mas que distância e distracção as nossas!
Aos corpos não convém fazermos guerra:
Não sendo nós, não convém fazermos guerra:
Inteligências, eles as esferas.
Ao contrário, devemos ser-lhes gratas
Por nos (a nós) haverem atraído,
Emprestando-nos forças e sentidos.
Escória, não, mas liga que nos ata.
A influência dos céus em nós atua
Só depois de se ter impresso no ar.
Também é lei de amor que alma não flua
Em alma sem os corpos transpassar.
Como o sangue trabalha para dar
Espíritos, que às almas são conformes,
Pois tais dedos carecem de apertar
Esse invisível nó que nos faz homens,
Assim as almas dos amantes devem
Descer às afeições e às faculdades
Que os sentidos atingem e percebem,
Senão um Príncipe jaz aprisionado.
Aos corpos, finalmente, retornemos,
Descortinando o amor a toda a gente;
Os mistérios do amor, a alma os sente,
Porém o corpo é as páginas que lemos.
Se alguém - amante como nós - tiver
Esse diálogo a um ouvido a ambos,
Que observe ainda e não verá qualquer
Mudança quando aos corpos nos mudamos.
Tradução de Augusto de Campos
Imagens: Study of a Female Nude,James Barry, 1840