Clarice em nós


Ler Clarice Lispector em romances ou contos é uma coisa, ler as cartas de Clarice é outra experiência. Já fui muito “clariceana”, agora não mais... o que mais vier dela pode me levar a um descontrole irremediável. Clarice Lispector é uma força poderosa da linguagem e pode se tornar uma influência nociva a quem quer escrever...

Não somente baseada nas cartas, mas nos romances, escrevi um roteiro cênico para uma peça que teve somente uma apresentação no encerramento de um congresso de literatura na Faculdade de Letras da UFRJ.

Quando trabalhei no Setor de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, em 1994, chegou em minhas mãos uma coleção das cartas de Clarice. Na época, o então diretor da Biblioteca, professor Afonso Romano de Santana, havia convencido a irmã da escritora, Tania Kauffman a doar parte de seu acervo com as cartas da irmã escritora. Eu estava ali naquele momento, na Seção de manuscritos, descobrindo Clarice e aquelas cartas com a letra da própria, manuscritas, em azul, em minhas mãos... Letras grandes, certas, às vezes confusas e meio tremidas.

Passava as tardes lendo e relendo aquelas cartas... e as noites, até a biblioteca fechar, copiando a mão uma por uma. Copiei a coleção inteira. Hoje descobri que estão publicadas. Das minhas, digitei algumas, e uma das mais belas é a que ela fala sobre o lago Leman.

Anos depois, acho que em 2002, recebo um telefonema: é Micheline Torres, uma amiga querida, bailarina, que havia feito também como atriz aquela modesta peça de faculdade, me pedindo: Qual é seu endereço, quero te mandar uma coisa... E eu respondo: O que é? Se for dívida , nem adianta... Micheline: nada disso! Dias depois chega uma carta linda e uma foto do Lago Leman. A foto que Clarice não tirou, a foto de Calrice e de seu momento que gerou uma carta, “ uma tentativa malograda”, segundo ela. Micheline, em uma de suas viagens para dançar no exterior com a Cia de Lia Rodrigues, foi a Suiça e esteve no tal lago de Lausanne...

A carta de Micheline é minha, pessoalíssima e guardada pra sempre na minha caixa vermelha etiquetada Memória, a de Clarice segue abaixo...e o Lago Leman está lá, em Lausanne, a minha espera... A peça de Rita de vez em quando aparece por aí...


Lausanne, 13 de julho de 1946
Elisa, Tania,
escrevo de Lausanne, sentada no parapeito do lago Leman. Perto tem uma orquestra com uma mulher tocando violino, uma marcha meio valsa, meio militar. Junto tem um hotelzinho estreito chamado Hotel du Port. Há montanhas a pique na outra margem do lago. Há uma fontezinha dividida em três ramos sobre uma bacia de pedra. Há uma criança comendo um biscoito. Uma mulher de chapéu branco num barco. Vocês quase que podem adivinhar que é sábado de tarde. O lago é de água doce e tem um cheiro gostoso de água. O lago é enorme e transparente. Junto de mim é esverdeado. Mas do meio para o fim está da cor do céu e a montanha mesmo está da cor do céu. Hoje à noite vai ter uma festa noturna no lago, sobre um barco. No banco está sentada uma mulher com o chapéu preto e fita branca enterrado até os olhos como em 1920 e tanto, lendo jornal. Isso que eu estou sentindo pode-se chamar de felicidade. Só que a natureza se faz tão estranha que o próprio momento de felicidade é de temor, susto e apreensão. É pena que não possa dar o que se sente, porque eu gostaria de dar a vocês o que sinto como flor. Compreendo que ontem em Berna, quando recebi carta de vocês, ficasse tão aflita. Talvez fosse de alegria - e de não poder dar esta mesma alegria naquele mesmo instante. Um momento muito forte como o de ontem sempre arrasta tudo para ele: arrastou todos os meus pecados que Deus não precisa castigar porque neles mesmos vem o castigo. Pecado de egoísmo, de indecisão, pecado de deixar morrer gente de fome e comer, pecado de não entender o mundo, pecado de amar demais, pecado de não saber amar. Vi um filme idiota onde o rapaz dizia: eu gosto de você. E a moça dizia: eu sei, mas não gosto do jeito pelo qual você ama as pessoas. Eu sei, é preciso dar muito mais do que eu dou. É também de minha natureza carregar aos ombros a culpa do mundo. Se todos sentissem isso talvez saísse um novo mundo. Uma pessoa só pode apenas sucumbir. Foi isso que fiz chorando no cinema e aliviando uma mágoa confusa. O início disso tudo foi a carta de vocês que eu botei junto do coração para sentir o calor dela e dormi assim, e mesmo agora, sentada junto do lado, tenho a carta na mesma posição, com o envelope me arranhando um pouco. Não incomoda, é como um aperto de mão um pouco mais forte. Agora tem um passarinho se aproximando da fonte. E dois meninos passaram, me olharam e continuaram a falar em francês. Fomos há pouco ver uma exposição de pinturas holandesas, de Van Gogh para cá. Eu estava vendo pacificamente com a cabeça. De repente, vi um pequeno quadro Vers le Soir , de um pintor chamado Karsen. Entendi muito bem o que você disse, Tania, sobre a paisagem que se misturou com você. Esse quadrinho finalmente me dominou. É uma casa no cair da noite. Não posso descrever. Tem umas escadas, umas heras, o branco é azulado e tudo um pouco escuro; tem umas estacas - é um fim de caminho com mato. Gosto de muitas coisas; mas de repente uma coisa é o que a gente está vendo e acima dela não existe mais nada, pelo menos por um instante; não sei se estou explicando bem.
Toda esta carta foi uma tentativa malograda de tirar um retrato deste lugar junto ao lago Leman, porque esqueci de trazer a máquina. E aproveitei a ausência da máquina para tirar o retrato deste momento também. Que Deus abençoe vocês e lhes dê uma alma luminosa. A paz esteja com vocês, minhas queridas.
Clarice.


E QUEM OUSARÁ CONCORDAR COM ELA DE QUE ESSA CARTA FOI UMA TENTATIVA MALOGRADA???





Lago Leman, Lausanne, Suiça, foto de Micheline Torres, 2002

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