João do Vale, o poeta do povo
No Sertão, a pedra não sabe lecionar,
E se lecionasse, não ensinaria nada;
Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
Uma pedra de nascença, entranha a alma.
João Cabral de Melo Neto, A educação pela pedra
Após assistirmos ao musical João do Vale - o poeta do povo, o que dizer? Temos uma euforia e também a emocionante atuação de Deuclides Gouvêa como o compositor João do Vale (há muito tempo que eu não via felicidade em um ator, brincando com prazer em seu personagem), a delicada direção musical de Marco Aureh, a atuação e a voz de Marcê Porena em canções memoráveis, a iniciativa tão importante de Maria Helena Khüner, autora, diretora, idealizadora do projeto.
Devo confessar: o que nos leva a sair em estado de euforia do teatro é um sentimento de reconhecimento, valor e admiração pela obra de João do Vale. E nisso reside toda a razão deste musical existir (espero que por muito tempo).
Entretanto, não nos evita um certo pesar em meio a alegria. Como a obra e o nome de João do Vale podem se manter hoje desconhecidos das próprias pessoas que, por vezes, facilmente cantarolam suas músicas?
João do Vale, em vida, já havia rompido o limite de seu anonimato. Sua sensibilidade e poesia não poderiam mesmo passar despercebidas a nós, brasileiros tão ignorantes de nossa própria história e de nosso lugar no mundo – foram elas a matriz do "poeta do povo", como era conhecido o compositor. Melhor seria se fosse o "poeta da resistência", mas talvez povo – principalmente o nordestino -- seja mesmo sinônimo de resistência.
João Batista do Vale nasceu em Pedreiras, Estado do Maranhão, Nordeste do Brasil, em 11 de outubro de 1934. Saiu de casa aos 14 anos para trabalhar. Chegou ao Rio de Janeiro em 1950 onde freqüentava programas de rádio tentando mostrar suas músicas. Em 1953, Marlene lançou em disco Estrela miúda, Luís Vieira e Dolores Duran também gravaram músicas de sua autoria nesta época. Em 1964, fez parte do show Opinião, dirigido por Oduvaldo Viana Filho, Paulo Pontes e Armando Costa, ao lado de Zé Kéti e Nara Leão. Ficou conhecido como o autor de um dos momentos mais marcantes do show: a música Carcará, em parceria com José Cândido, na interpretação de Maria Bethania. Nesta época, é convidado pela Universidade de Nashville, lá se apresentando em duas ocasiões.
João do Vale teve ao longo de sua carreira alguns dos mais importantes artistas da música brasileira gravando suas músicas: Chico Buarque, Nara Leão, Tom Jobim, Gonzaguinha, Zé Ramalho, Marinês, Ivon Cury, dentre outros. Faleceu em São Luís, capital do Maranhão, em 06 de dezembro de 1996.
Impressionante a trajetória deste maranhense, semi-analfabeto, e a sua expressão poética e musical, inventando uma linguagem única, absorvendo os falares e dizeres do povo nordestino, seu imaginário, suas histórias de sofrimento e abandono que João do Valle experimentou tão profundamente – como quando, ainda criança, fora expulso da escola para dar lugar a uma outra de mellhores posses, fato o qual João se refereria com mágoa pelo resto de sua vida.
O musical não esbanja recursos de produção mas a própria falta de recursos é preenchida por criativas soluções cênicas, transformando o vazio em espaço significativo por onde o elenco -Marcê Porena, Deuclides Gouvêa, Rubens de Araújo - , em elevada sintonia, transitam, dançam, cantam, interpretam episódios trágicos e cômicos da vida e carreira de João do Vale. Ao fundo do palco, um vídeo, servindo de cenário, exibe imagens que dialogam com as cenas. Porém, a força dos atores e dos músicos (que por vezes atuam como personagens) é suficiente.
João do Vale está inteiro. Por meio de suas músicas, poesia de pedra ativa. Por meio do respeito, talento e dedicação de artistas que como ele, sabem muito bem: é preciso tirar pedras do caminho para continuar andando. E o chão de areia do Sertão, com suas crianças de pés descalços, parece tão perto.
Assistir a João do Vale - o poeta do povo, depois de tudo isso, se torna quase um dever cívico.
João do Vale - o poeta do povo
4 de julho a 1 de setembro 2006
(Terças e quartas, em julho,
terças a sextas, a partir de agosto)
Teatro Sesi – Rio de Janeiro
Av. Graça Aranha, 1 - Centro
Fone: (021) 2563-4166
Texto e Direção: Maria Helena Kühner
(baseado no livro homônimo de Márcio Paschoal)
Direção Musical: Marco Aureh
Iluminação: Djalma Amaral
Produção: Rômulo Rodrigues
Elenco: Deuclides Gouvêa, Rubens Araújo e Marcê Porena
Músicos: Marco Aureh, Leo Rugero, Paulinho Baqueta e Cacau Amaral
ANOTE
Marco Aureh, diretor musical e arranjador do espetáculo João do Vale- o poeta do povo apresenta o show Na Asa do Vento, com as canções de João do Vale, dia 14 de julho de 2006.
No Armazém Digital de Botafogo – Rio de Janeiro
Rua General Severiano, 97/108 - Rio Plaza Shopping
Fone: (21) 21019300