AS BICHAS-MONSTRO E UM TEATRO




Imagine um leitor incauto abrir o jornal em um lindo sábado de abril, e deparar-se na seção de Classificados com o seguinte anúncio:

BICHAS
Servidas!!!

Felizmente está provado que as moléstias sifilíticas, leprosas, cancrosas, etc podem se comunicar com bichas que já serviram para tal moléstia e para evitar esse

PERIGO CERTO!!!

É um caso de consciência se fazer uso de bichas novas, e, como não se pode conhecer, pode-se comprar por varejo, por cento e milhares, mais em conta que em qualquer parte, na única casa de confiança, conhecida e afamada por nunca alugar bichas, recebendo-as diretamente por todos os paquetes, já verificada por uma comissão de higiene publica; CASA DAS BICHAS-MONSTRO

132 RUA DO OUVIDOR 132


Seria esse um anúncio de uma nova forma de comércio sexual? Ou melhor, homossexual?

Seria esse um novo anúncio de uma peça de teatro original?

Não, incauto leitor.

As bichas que aqui estão sendo vendidas, não são as que você imagina.

São as que se vendiam pelo Jornal do Commercio do Rio de Janeiro em 06 de abril de 1867, em um sábado talvez de sol.

As bichas são aquelas que “chupavam o sangue corrupto de uma moléstia”, conforme está em um outro anúncio (Jornal do Commercio, 25 de abril de 1867) .

Essas bichas limpinhas da Casa das Bichas-Monstro da Rua do Ouvidor 132, no Rio de Janeiro, são as que serviam para um tratamento médico muito comum no século XIX. A bicha era a sanguessuga Hirudo medicinalis, usada há milênios, desde o Egito antigo. Quando uma sanguessuga morde, libera cerca de cem substâncias químicas com funções antibióticas, antimicrobiais e antinflamatórias, que aumentam a irrigação no local da moléstia, melhorando o processo de cicatrização de feridas, e dores como artrite, sinusite - onde funciona como drenagem do muco que se aloja causando dores e inflamações.

No Brasil, a sangria também era desatada. Acho que vem daíaorigem desse termo, até hoje usado na língua portuguesa, quando se quer dizer que algo ou alguém fez algo com muita pressa... Bem,  eram os barbeiros sangradores quem sangravam os enfermos, tratando febre, dor de dente e asma, e que segundo a história estavam presentes da europa desde a idade média.  E pra ser um bafbeiro sangrador tinha que ter autorização do cirurgião-mor e comprovar 2 anos de experiencia em sangramentos, aí o se podia entrar em um estabeleicmento destes tanto pra fazer a barba como pra ser sangrado...
O inseto transmissor do Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas, recebeu no Brasil, em linguagem popular sertaneja, vários nomes, conforme a região geográfica. De todos eles, o mais comum nas regiões sudeste e centro-oeste, é o de barbeiro, onde a doença de Chagas passou a ser conhecida popularmente como "a doença do barbeiro".O próprio Chagas usou a expressão "doença do barbeiro" em uma de suas publicações. [1]
        É de se admitir que a denominação popular de "barbeiro" tenha sido inspirada no comportamento do inseto, relacionando-o com a profissão de barbeiro.
        Duas interpretações são encontradas na literatura médica: a primeira, mais difundida, é de que o triatomíneo suga o sangue das pessoas principalmente na face, por ficar esta parte do corpo descoberta e, portanto, mais acessível ao ataque. Estabelece-se, assim, uma relação de face com barba e, desta, com a profissão de barbeiro. A segunda interpretação é de que, sendo o triatomíneo inseto hematófago, ao sugar o sangue de suas vítimas à noite, enquanto estas dormem, pratica verdadeiras sangrias.http://usuarios.cultura.com.br/jmrezende/barbeiros.htm


A maior parte dos aplicadores de sanguessuga eram os barbeiros, categoria médica que acabou sendo exercida por escravos. Os barbeiros eram geralmente indivíduos da baixa condição social, mulato ou negro, escravo ou livre. Debret(1818) retratou a atividade de escravos barbeiros, no Rio de Janeiro, que normalmente trabalhavam “ao ganho” em pequenas lojas no centro da cidade. Na gravura uma tabuleta continha o seguinte letreiro: “Barbeiro, cabeleireiro, sangrador, dentista e deitam bichas”. O barbeiro sangrava, aplicava ventosas e “bichas”, extraía dentes, cortava o cabelo, fazia barba, prescrevia ungüentos e pomadas e vendia em sua loja drogas como água de colônia e pós de dentes. Um escravo barbeiro que trabalhava “ao ganho” para o seu senhor tinha grande valor no mercado de escravos. Os barbeiros vendiam ou alugavam sanguessugas, variando o preço conforme o tamanho, tendo maior valor as maiores, as bichas-monstros e as mais novas, chegadas recentemente ao país. Trocavam-se as “que não pegavam”, o que acontecia com freqüência.http://historiadefriburgo.blogspot.com/2010/07/vende-se-bichas.html


Esse procedimento era comum não só no século XIX mas até o início do XX, e - PASMEM! - até mesmo hoje em dia como tratamento alternativo. Incrivelmente, podemos citar dois exemplos inusitados: India e Demi Moore. Na Caxemira, as sanguessugas estavam sendo adotadas nos hospitais, cada bicha custa o equivalente a 2 reais, são usadas e depois jogadas fora para não propagar doenças. E a atriz Demi Moore de 45 anos disse uma vez no programa do David Letterman que usa sanguessugas como tratamento de beleza. Será que tira celulite? Que nojo, Demi!


Voltando ao passado, Moacyr Andrade no texto ‘Coisas da medicina no início de Belo Horizonte’ (Revista do Arquivo Público Mineiro, vol. 33 1982,nº xxxiii, p. 233) descreve:

“As nojentas sanguessugas ficavam expostas em vidros, na vitrine da barbearia do sr. Moura. Os médicos pediam-nas e o sr. Moura enviava. Eram colocadas nos doentes, na parte onde deveria ser tirado o sangue. Agarravam-se à pele, geralmente do braço, pernas, nádegas, ou costas. Chupavam o sangue e se intumesciam. Quando fartas do repasto hemofágico, soltavam-se. Se fosse necessário, punham-se outras no mesmo local, para tirar mais sangue... As sanguessugas já cheias eram depositadas em água e soltavam o sangue. E estavam prontinhas para novas aplicações. Uns médicos preferiam sanguessugas, outros, ventosas sarjadas.”

Que nojo!

Mas o Sr Moura não era médico, era ele um barbeiro bem popular no início do século XX em Belo Horizonte. Um homenzinho simpático, de cavanhaque e cartola, que criava as sanguessugas e as aplicava para sangria. E, como o nosso amigo da Rua do Ouvidor, também tascava anúncios de seu “produto” nos jornais.

É a pesquisadora Betânia Gonçalves de Figueiredo quem nos informa: Eram barbeiros que faziam barba, cabelo e bigodes e alugavam as tais bichas. E muitos também aproveitavam seus instrumentos para fazer pequenas intervenções - sangrar, escarificar, aplicar ventosas e sanguessugas, clisteres e extrair dentes. Se o incauto leitor for procurar o significado da palavra BARBEIRO em dicionários do século XIX, vai encontrar: "Homem que faz as barbas e as raspa, corta, ou apara. Há barbeiros de lanceta, ou sangradores. Outros dantes consertavam as espadas, limpando-as, aliás alfagemes".

Mas a Casa das Bichas-Monstro de 1867, da Rua do Ouvidor 132, parece um estabelecimento especialmente para as bichas limpinhas, virgens, aquelas que jamais chuparam nenhum sangue corrupto... Um business de bichas... Não parece haver ali uma barbearia. Já era uma evolução - um lugar para se comprar bichas novas, as alugadas eram de um perigo mortal!

Imagino um diálogo entre um moço e uma moça que acabam de se conhecer na saída da ópera:

Ela: Vossa mercê trabalha em quê?
Ele: Eu vendo bichas-monstro limpinhas, limpinhas, testadas pela higiene pública... Meu cartão, Senhorita.
Ela: Obrigada, Sr. Tenho uma tia doente! Está mesmo precisando ser sangrada...

Já li relatos de cantoras de ópera do século XIX – como um de Augusta Candiani - dizendo que não pode fazer a ópera tal porque estava doente e “sangrada”... Nunca entendi muito bem o que significava isso. Achei que tinha algo a ver com o ciclo menstrual, estranhando pois não seria essa intimidade-tabu na época revelada pelos jornais. Agora sei, estavam elas sendo tratadas com as tais bichas, ou seja, sendo sangradas...

Imagine só: aquelas cobrinhas sobre a pele chupando o sangue da ferida, engordando e engordando cheias de sangue corrupto... Non, io non posso cantare quest'aria! - grita a prima donna.

Penso em Machado de Assis, Alvares de Azevedo, Paula Brito, Martins Pena, José de Alencar, Augusta Candiani, Rosine Stoltz, João Caetano - todos sendo sangrados.

Que nojo, Meu Deus! Por mais que eu ame as coisas do passado... Prefiro as bichas de hoje. E agradeço ter nascido depois de Louis Pasteur, não ser estrela de Hollywood e não viver na Caxemira.

Além dos barbeiros, havia também os cabelereiros, que não têm nada a ver com as bichas e as sangrias... Eram eles que arrumavam as damas, os nobres, o artistas no teatro. Em 1843, por exemplo, o Rio de Janeiro abrigava sete, maioria de franceses. Na Rua do Ouvidor, Alexandre e Francisco Desmarais – presentes em quase todas as produções do Teatro São Pedro de Alcântara, o maior teatro da Corte, onde hoje é o Teatro João Caetano. Na do Piolho, Cris. Na Rua da Ajuda, J. Borrielo. Somente dois contavam com sala de cortar cabelo. Ambos concorriam pelas damas na mesma Rua de São Pedro: José Pinto Ramos no número 246 e Teissier que dizia ter grande sortimento de cabelos postiços para senhores e senhoras, sala para cortar o cabelo e todas as qualidades de perfumarias, na loja vizinha, número 248. Tudo isso está no Almanak Laemmert de 1844.

Inclusive, o Teatro João Caetano está lá graças a um cabeleireiro. Foi esse o teatro destinado a abrigar os divertimentos da Corte e construído no Largo do Rocio, hoje Praça Tiradentes(RJ), quando D João VI ainda reinava. E quem teve a idéia de ali se fazer um teatro real não foi um ator ou um empresário, mas sim um cabeleireiro português, Fernando José de Almeida, que aqui chegou em 1801 para cuidar dos cabelos das damas da comitiva do Vice-Rei.

O Real Teatro São João foi inaugurado em 12 de outubro de 1813. Depois de vários nomes, chegou ao de João Caetano, em homenagem ao grande ator brasileiro que começou sua carreira ali, naquele mesmo palco.

Ainda quando Fernando José de Almeida era o empresário, o teatro é destruído por um incêndio. Fernando então pega um empréstimo do Banco do Brasil e morre pouco depois sem conseguir sanar a dívida. O prédio então passa a ser do banco, e depois vendido a uma sociedade de acionistas. Acho que aí – precisamente em 1837 - é que começa o problema financeiro do teatro brasileiro... Mas isso é outra história.

Ao certo, o uso de bichas era uma prática em Portugal também. Será que vem daí a nomenclatura lusitana para "fila"? Uma fila, que em Portugal chamam de "bicha", lembra mesmo uma, o formato do bicho, ou melhor, da bicha...

Não consigo mais escrever sobre isso! Depois dessa da Demi Moore, fiquei muito assustada... Acho que as bichas de antigamente vão voltar...

Estou com dor de barriga. Dá licença, tenho que ir ao banheiro... Que as bichas de hoje me socorram...

Na imagem do topo, O Grito de Edvard Munch, porque só gritando mesmo... QUE-NO-JO!


A imagem da bicha, pesquei no site G1/planeta bizarro

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