...mas é escripto por mim, Fernando.



LEIAM  Quando fui outro uma coleção de textos de Fernando Pessoa, publicado pela editora Alfaguara. Não gosto muito de antologias mas essa, organizada por Luiz Ruffato, preza uma produção gráfica cuidadosa e muito bem selecionada para  formar um painel da vida do escritor. Para quem nunca leu Pessoa, vale a dica. Para quem já é pessoano, é quase uma antologia que poderíamos ter feito nós mesmos.

Lá encontram-se boa parte dos textos de que mais gosto. Desde o Poema em linha reta que brada: “Nunca conheci quem tivesse levado porrada... todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo (...) Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?” Até algumas das cartas das desventuras de amor de Pessoa e Ophelia, a Bebé, considerada o único amor na vida do escritor. Logo ele quem escreveu que todas as cartas de amor são ridículas, deixou junto a sua obra algumas dessas, muito ridículas pois as cartas de amor, se há amor, têm de ser ridículas... como ele diz.

Quando conheceu Ophelia de Queiroz, Pessoa vivia do trabalho de escriturário, de tradução, um pouco de poesia e bebidas.... Ophelia Queiroz, 19 anos, era funcionária do comércio como ele. O namoro de Pessoa com Ophelia iniciou-se em 1920, de março a novembro. A primeira carta data de 1 de março. Há nas cartas aquele tratamento infantil, meio débil. Só aos amantes é permitido infantilizar-se através de apelidos e um vocabulário específico ditos com aquela vozinha melosa quase em falsete errando na própria prosódia como um sotaque de criança que começa a falar... Meu bebê, Bem, Ném... Mozinho, Amorzinho, Pinho... essa plêiade de sufixos “inho” que usamos e abusamos, nós que não somos poetas... Com Pessoa e Ophelia havia o mesmo: Ophelinha, Bebê... que também é meiguinha, bombom,amorzinho, bebezinho, bonequinha, pequenina...

Ophelia muda-se com a família, o poeta retorna a Lisboa com a família após a morte de seu padastro. É quando Pessoa  entra em crise. Em 29 de novembro de 1920, o rompimento do namoro, ele escreve:  

"Lisboa, 29/XI/1920 - Ophelinha, Agradeço a sua carta. Ela trouxe-me pena e alívio ao mesmo tempo. Pena, porque estas coisas fazem sempre pena; alívio, porque, na verdade, a única solução é essa - o não prolongarmos mais uma situação que não tem já a justificação do amor, nem de uma parte nem de outra. Da minha, ao menos, fica uma estima profunda, uma amizade inalterável. Não me nega a Ophelinha outro tanto, não é verdade? Nem a Ophelinha, nem eu, temos culpa nisto. Só o Destino terá culpa, se o Destino fosse gente, a quem culpas se atribuíssem. O Tempo, que envelhece as faces e os cabelos, envelhece também, mas mais depressa ainda, as afeições violentas. A maioria da gente, porque é estúpida, consegue não dar por isso, e julga que ainda ama porque contraiu o hábito de se sentir a amar. Se assim não fosse, não havia gente feliz no mundo. As criaturas superiores, porém, são privadas da possibilidade dessa ilusão, porque nem podem crer que o amor dure, nem, quando o sentem acabado, se enganam tomando por ele a estima, ou a gratidão, que ele deixou. Estas coisas fazem sofrer, mas o sofrimento passa. Se a vida, que é tudo, passa por fim, como não hão de passar o amor e a dor, e todas as mais coisas, que não são mais que partes da vida? Na sua carta é injusta para comigo, mas compreendo e desculpo;decerto a escreveu com irritação, talvez mesmo com mágoa, mas a maioria da gente - homens e mulheres - escreveria, no seu caso, num tom ainda mais acerbo, e em termos ainda mais injustos. Mas a Ophelinha tem um feitio ótimo, e mesmo a sua irritação não consegue ter maldade. quando casar, se não tiver a felicidade que merece, por certo que não será sua a culpa.Quanto a mim... O amor passou. ma conservo-lhe uma afeição inalterável, e não esquecerei nunca - nunca, creia -nem a sua figurinha engraçada e os seus modos de pequenina, nem a sua ternura, a usa dedicação, a sua índole amorável. Pode ser que me engane, e que estas qualidades, que lhe atribuo, fossem uma ilusão minha; mas nem creio que fossem, nem, a terem sido, seria desprimor para mim que que as atribuísse. Não sei o que quer que lhe devolva - cartas ou que mais. Eu preferiria não lhe devolver nada, e conservar as suas cartinhas como memória viva de um passado morto, como todos os passados; como alguma coisa de comovedor numa vida, como a minha, em que o progresso nos anos é par do progresso na infelicidade e na desilusão. Peço que não faça como a gente vulgar, que é sempre reles; que não me volte a cara quando passe por si, nem tenha de mim uma recordação em que entre o rancor. Fiquemos, um perante o outro, como dois conhecidos desde a infância, que se amaram um pouco quando meninos, e, embora na vida adulta sigam outras afeições e outros caminhos, conservam sempre, num escaninho da alma, a memória profunda do seu amor antigo e inútil.Que isto de "outras afeições" e de "outros caminhos" é consigo, Ophelinha, e não comigo. O meu destino pertence a outra Lei, de cuja existência a Ophelinha nem sabe, e está subordinado cada vez mais a obediência a Mestres que não permitem nem perdoam. Não é necessário que compreenda isto. Basta que me conserve com carinho na sua lembrança, como eu, inalteravelmente, a conservarei na minha. Fernando

Por meio de um sobrinho de Ophelia, o poeta Carlos Queiroz – amigo de Pessoa - , o poeta retoma a relação dez anos depois. Dessa vez, além de cartas, o telefone. Em 11 de setembro escreve-lhe a primeira da segunda série de cartas. Em 11 de janeiro de 1930, a última.

Foram 51 cartas endereçadas à Ophelia. Em junho de 1935, ela ainda recebe um telegrama de Pessoa e em seguida um exemplar autografado de Mensagem.


Terrível Bébé,
Gosto das suas cartas, que são meiguinhas, e também gosto de si, que é meiguinha também. E é bonbon, e é vespa, e é mel, que é das abelhas e não das vespas, e tudo está certo, e o Bébé deve escrever-me sempre, mesmo que eu não escreva, que é sempre, e eu Estou triste, e sou maluco, e ninguém gosta de mim, e também porque é que a havia de gostar, e isso mesmo, e torna tudo ao princípio, e parece-me que ainda lhe telephono hoje, e gostava de lhe dar um beijo na bocca, com exactidão e gulodice e comer-lhe a bocca e comer os beijinhos que tivesse lá escondidos e encostar-me ao sem hombro e escorregar para a ternura dos pombinhos, e pedir-lhe desculpa, e a desculpa ser a fingir, e tornar muitas vezes, e ponto final até recomeçar, e porque é que a Ophelinha gosta de um meliante e de um cevado e (...) e eu gostava que a Bébé fosse uma boneca minha, e eu fazia como uma crença, despia-a, e o papel acaba aqui mesmo, e isto parece ser impossível ser escripto por um ente humano, mas é escripto por mim. Fernando  09/10/1929



Lisboa, 1/III/1920 
Ophéliazinha:


Para me mostrar o seu desprezo, ou pelo menos, a sua indiferença real, não era preciso o disfarce transparente de um discurso tão comprido, nem da serie de « razões » tão pouco sinceras como convincentes, que me escreveu. Bastava dizer-m'o. Assim, entendo da mesma maneira, mas doe-me mais.
Se prefere a mim o rapaz que namora, e de quem naturalmente gosta muito, como lhe posso eu levar isso a mal? A Opheliazinha pode preferir quem quiser: não tem obrigação - creio eu - de amar-me, nem, realmente necessidade (a não ser que queira divertir-se) de fingir que me ama.
Quem ama verdadeiramente não escreve cartas que parecem requerimentos de advogado. O amor não estuda tanto as cousas, nem trata os outros como réus que é preciso « entalar » .
Porque não é franca comigo? Que empenho tem em fazer sofrer quem não lhe fez mal - nem a si, nem a ninguém-, e quem tem por peso e dor bastante a própria vida isolada e triste, e não precisa de que lh'a venham acrescentar creando-lhe esperanças falsas, mostrando-lhe afeições fingidas e isto sem que se perceba com que interesse, mesmo de divertimento, ou com que proveito, mesmo de troça.
Reconheço que tudo isto é cômico, e que a parte mais cômica d'isto tudo sou eu.
Eu-proprio acharia graça, se não a amasse tanto, e se tivesse tempo para pensar em outra cousa que não fosse não fosse no sofrimento que tem prazer em causar-me sem que eu, a não ser por amá-la, o tenha merecido, e creio bem que amá-la não é razão bastante para o merecer. Enfim…
Ahi fica o " documento escrito" que me pede. Reconhece a minha assinatura o tabelião Eugenio Silva.


Fernando



Em 1936, Ophelia trabalhava no Secretariado Nacional da Informação. Conheceu ali o teatrólogo Augusto Soares, de quem se torna esposa em 1938, três anos após a morte de Pessoa.

Ophelia de Queiroz morreu em 1991 aos 91 anos.

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