Minha alma imoral e impura: CLARICE NISKIER



Em 2005 estive na estreia desse espetáculo estonteante de Clarice Niskier, "A Alma Imoral", baseado no livro homônimo do rabino Nilton Bonder, mas muito mais interessante que o livro. A entrevista com a atriz foi em 2005, o texto foi publicado em uma revista online americana nesse mesmo ano, em inglês e português, mas recentemente foi deletado pelo editor. Como eu julgo tão importante esse espetáculo e essa atriz, disponibilizo a versão do texto em português e todos os significados da descoberta. 






minha alma é imoral e impura
agora o corpo é meu
puro puto
eu faço whatever

a alma não transgride
ela desobedece
vai para um lado
eu vou para outro
sai e passeia por entre
cachoeira e montanhas de pinho verde
e sente o cheiro dos girassóis
vem contar-me seus segredos
a dividir sua felicidade comigo

eu de inveja
aprisiono-a na delicadeza

a alma não agride
transgride, Clarice
é claro que você entende...
duas palavras foneticamente
imperfeitas

a alma não é pura, Clarice
é imoral e resistente
aço do qual
se fez toda na sua
ação dramática

a sua alma imoral
mudou o meu dia seguinte
varre a noite
abriu a caixa de Pandora,
enfim.


A peça de Clarice Niskier "A Alma Imoral" ofertou-me o poema acima, uma atriz brilhante, o livro de Nilton Bonder. Todos sentimentos em coisas concretas - o poema, a atriz, o livro. A peça é um ato generoso de doação, sem medos nem censura.

Um encontro casual em um programa de TV com o escritor e rabino Nilton Bonder fez Clarice Niskier conhecer o livro "A Alma Imoral". A peça começou naquele primeiro encontro. E também podemos dizer que um novo livro começou naquele dia - escritura e leitura são vias de mão dupla. O consistente trabalho de Clarice Niskier contribuiu para o processo de leitura do livro. As palavras, a atriz e o leitor não serão mais os mesmos.

Mas sobre o que é essa Alma Imoral? Nilton Bonder explica no programa do espetáculo: " (...) um texto sobre o sagrado e o reverso do sagrado. Sobre a alma sagrada e etérea como o pensar e as palavras; cujo reverso sagrado é o corpo e seu gestual. Quem é moral e quem é imoral está no olhar, na retina que inverte imagens e nos permite interpretar o mundo, enxergá-lo."

Tudo isto está sendo lido no palco. Uma leitura cheia de suspiros e silêncio, sussurros e sorrisos obtusos. Leitores, em máscaras de platéia, lendo a leitura de uma atriz. Que experiência fascinante é esta quando a ação, a voz e o corpo são um único e verdadeiro momento da criação de uma palavra.

A peça provoca, e essa provocação nos leva a um sentimento estranho e desconfortável. É um convite às conexões entre corpo e alma, o total da vida que é infinito.

E Clarice Niskier escolheu esse texto no momento exato em que celebra 25 anos de sua carreira como atriz. É totalmente uma atriz de seu tempo: que sabe como dizer e O QUE dizer, escolhendo seu caminho, adaptando, dirigindo, trabalhando na desordem de suas próprias paisagens.

Clarice adaptou e montou ela mesma, supervisionada pelo diretor Amir Haddad. É seu terceiro trabalho de dramaturgia, os anteriores foram "Buda" e "Mulheres de 40" ambos dirigidos por Domingos de Oliveira.

Fiz algumas perguntas, de meu jeito, para Clarice Niskier, sobre sua leitura e seu processo de montagem de "A Alma Imoral".

Clarice, como esse livro foi parar em suas mãos?

Fui a um programa de televisão falar de uma peça que eu estava fazendo, um programa de entrevistas, com vários convidados. O Nilton Bonder era um dos convidados. Quando o programa acabou, fui falar com ele. Fiquei muito encantada com a entrevista dele. Ele estava lá para falar do livro "A Alma Imoral". Então, ele me deu o livro de presente. Li e te digo com franqueza: pra mim, é um dos melhores livros que já li na minha vida. É um livro muito corajoso. Aborda assuntos difíceis, sem rodeios. É um livro muito, muito corajoso, honesto e profundo. Aliás, como esse livro foi parar nas minhas mãos é o próprio prólogo da peça.

Como esse livro tocou você? Como você tocou o livro?


Como te falei, esse ano é o meu aniversário de 25 anos de atriz. São mais ou menos trinta e cinco peças no currículo. Não gosto de ficar contabilizando, mas é um número realmente significativo. Eu mesma tenho que admitir que não comecei ontem. Então, quando meu coração sentiu vontade de montar esse texto, eu escutei. O coração de uma atriz quando bate por um texto, deve ser escutado de verdade. Mesmo que a princípio pareça uma loucura sem precedentes. Eu sempre considerei o teatro um risco. E correr esse risco é um ato transgressor em si. Mas, mesmo assim, você pode se acomodar em limites conhecidos. Eu quis ir além dos meus limites conhecidos. Eu precisava enfrentar esse desafio. Precisava adaptar sozinha o texto e me responsabilizar pela concepção da peça. Precisava disso como do ar que respiro. Aí, não sei explicar o porque dessa necessidade. Só sei que de tempos em tempos vou correr riscos assim, porque sem isso, sei lá, parece que vai me faltar ar para viver.

Sua peça foi baseada em uma obra de caráter filosófico mas que você transformou em algo absolutamente acessível e espontâneo. Como foi esse processo de aproximação e de adaptação? Você sofreu muito?


Sofri, no bom sentido. Sim, existe um sofrer "dubem". Foi um trabalho cheio de esperança, uma "ralação" repleta de certezas. Eu tinha certeza de que valia a pena aquele trabalho de adaptação. Valia a pena ficar horas e horas naquelas páginas, transformando o texto para o teatro. Esse ano faço 25 anos de palco. Tinha feito com o diretor Eduardo Wotzik um monólogo com textos literários de Clarice Lispector. Foi uma peça muito bem sucedida. Trabalhei com o Domingos Oliveira em criação de texto. Com a supervisão dele, escrevi o monólogo "Buda". Então, com essa experiência e com muito entusiasmo pelo texto do Nilton, fui com carinho e sem pressa fazendo a adaptação. Depois que o primeiro tratamento ficou pronto, fiz várias leituras na casa de amigos, em livrarias, teatros, etc e os debates foram muito importantes para a síntese teatral. O texto que está em cena é o décimo-quinto tratamento. Li todos os livros que o Nilton já tinha publicado. Fui fundo no pensamento dele. E a supervisão do Amir Haddad foi muito feliz. Porque ele soube respeitar profundamente meus sentimentos de atriz e com isso a peça fluiu muito naturalmente.

De que é feita a sua peça "A Alma Imoral"?


Minha peça é feita de muito sentimento. De entendimento, de vontade de falar com o outro a partir de um ponto muito sincero em mim, tanto que a peça não tem personagem, sou eu mesma em cena.

O que você tem recebido dessa peça? Como foi a repercussão, as pessoas saem em estado poético como eu?

A peça foi super bem recebida. Houve uma compreensão profunda do trabalho, tanto por parte do público como da crítica. As pessoas compram ingressos para sentar no chão, não se importam. Vejo a transformação das pessoas na platéia. É incrível ouvir o silêncio que vem da platéia, um silêncio profundo, vivo, desculpe o termo mas, às vezes, acontece um silêncio-quase-cósmico, estou exagerando? E o público ri, chora, me agradece. O que eu tenho recebido dessa peça é uma possibilidade enorme de crescimento.

Há possibilidade de vermos você em "A Alma Imoral" nos palcos de novo?

Sim, vou reestrear a peça no Teatro Leblon, dia 29 de agosto. Ficarei em cena todas as terças e quartas, às 21h. Serão dois meses de temporada. Espero seguir ainda depois.

E depois, Clarice?

Estou cheia de projetos futuros. Inclusive, aprendi através desse texto que não há transgressão se não há esperança no futuro. A nossa escuridão se ilumina através da nossa esperança humana. Querem nos roubar a idéia de futuro. Querem nos fazer crer que não temos mais futuro. As ameaças são terríveis: falta de água potável, aquecimento global, fome e miséria no planeta. Tudo custará um real e não terá durabilidade nenhuma. A alimentação será ideal somente para os clones. Enfim, querem nos impor um mundo sem saída. Eu não quero entrar nessa. Mesmo sabendo que essas ameaças são reais, quero continuar me humanizando e me transformando cada vez mais. Quero ir me sensibilizando cada vez mais, buscando cada vez mais
conhecimento. Nós temos que encontrar saídas. E acho que "A Alma Imoral" é uma das saídas que encontrei


A Alma Imoral


Texto: Nilton Bonder
Adaptação e intepretação: Clarice Niskier
Supervisão: Amir Haddad
Figurino: Kika Lopes
Iluminação: Aurélio de Simoni
Direção Musical: José Maria Braga
Preparação Vocal: Célio Rentroya
Preparação Corporal: Márcia Feijo
Programação Visual: João Gabriel
Direção de Produção: Celso Lemos
Assessoria de Imprensa: João Pontes e Stella Stephany

REESTRÉIA 29 de agosto, terça-feira, 21h
TEMPORADA de 29 de agosto a 01 de novembro
LOCAL Teatro do Leblon - Rua Conde de Bernadotte, 26, Leblon, Rio de Janeiro
Tel: (21) 2294-0347
HORÁRIOS Terças e quartas, às 21h

2005, Andrea Carvalho Stark

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