AMIR HADDAD: RESISTÊNCIA E POTÊNCIA NO TEATRO BRASILEIRO


EM um belo dia de setembro de 2006, eu estava passando pelo Largo da Carioca, era hora do almoço e eu estava procurando um lugar para acabar com uma fome imensa e ansiosa,  quando vejo Amir Haddad e seu grupo Tá na Rua finalizando mais uma apresentação. Havia conhecido o diretor quando andava de mala e cuia pela Lapa à procura de algo que até hoje não encontrei. Bem, esse tipo de gente, que procura coisas e nunca encontra, acaba certamente caindo na Casa do Tá na Rua, grupo "dirigido" por ele, em suas oficinas, nos seus blocos, na festa e no desbunde necessário. Já fazia uns 10 anos. Vendo aquilo me deu uma ternura, perguntei: por que não entrevistar o Amir? Aproveitei esse meu mood e fui falar com ele. Marcamos a entrevista.

Amir Haddad me recebeu para uma conversa que contou também com a participação do céu azul de um dia quente de verão carioca. Da varanda de sua casa em Santa Teresa, deslumbramos gozosamente a paisagem da Baía de Guanabara com o Morro do Pão de Açúcar ao fundo.

A entrevista foi originalmente publicada em janeiro de 2007 em uma revista online americana, mas não está mais disponível. Publico, então, aqui em meu blog para que a potência e a resistência dos artistas do teatro brasileiro não sejam jamais esquecidas. 


 AMIR HADDAD: RESISTÊNCIA E POTÊNCIA NO TEATRO BRASILEIRO 

por Andrea Carvalho Stark 

 Das perguntas 

O teatro deveria indagar-se para acenar caminhos e provocar. Talvez seja esse o maior desafio às novas gerações: perguntar o porque sem perder-se em pseudo-estéticas ou em pseudo-arte.
Perguntamos "Por quê?" quando não há perguntas nem respostas. Perante esse silêncio que aturde a sensibilidade, pergunta-se, portanto, para salvar possibilidades, saídas, resgates, socorros e um futuro. Há uma espera constante e nem sempre tranqüila.

Dentre os  que não sabem esperar está Amir Haddad.  Amir nasceu em Minas Gerais, cresceu em São Paulo, estreou como diretor de teatro em  1957. No ano seguinte, participou da criação do Teatro Oficina. Em 1959, ainda com o Oficina, ganhou seu primeiro prêmio de direção com "A Incubadeira", de José Celso Martinez Corrêa.

Desde 1965, trabalha no Rio de Janeiro, primeiramente  no Teatro Universitário Carioca e depois em dois grupos que cria e dirige: A Comunidade e o Tá na Rua, que hoje conta 25 anos de existência, e se transformou em Instituto. 

O Instituto Tá na Rua reúne arquivo sobre a sua história – projeto este que recebeu patrocínio da Petrobrás para catalogação e organização de acervo e será disponibilizado ao público no final de 2007 – o grupo  de teatro Tá na Rua – 25 anos renovando a linguagem do teatro de rua no Brasil –, e a Escola Carioca do Espetáculo Brasileiro –, escola de formação de atores, que busca um teatro como  "festa, celebração, considerando nossa herança africana, mediterrânea para pensar cariocamente o teatro brasileiro". Diz Amir:   

"Atividades didáticas eu sempre exerci, me renovo muito assim.  Eu acho que o Rio tem muito a ver com o tipo de teatro que eu  faço, eu bebo das fontes vivas que corre pela cidade. Eu não viveria meu  trabalho dessa maneira fora do Rio".

Além de professor e diretor, Amir também é ator. Participou recentemente de uma novela de televisão na TV Globo  e do filme "O homem do ano" de José Henrique Fonseca. É diretor requisitado a dirigir peças no palco italiano e já recebeu alguns dos importantes prêmios de direção no teatro brasileiro.

Transita de Shakespeare ao Carnaval, dos Autos e Cortejos à Stanislaw Ponte Preta,  de atores famosos e reconhecidos à jovens de seus cursos de formação de ator. 

Em 2007, Amir comemora 70 anos de vida, e está preparado para as comemorações: "Ainda não sei como, mas quero comemorar 70 sim. Acho uma data incrível! E eu nem acredito, parece que estou falando de outra pessoa".

 Confessa que come muito carboidrato, vai ao teatro "muito de vez em quando" e ao cinema quase nunca, "cinema eu resolvo em casa mesmo, e assisto sempre aos mesmos filmes". Suas leituras também são as dos mesmos textos: Shakespeare,  "Don Quixote" de Cervantes, Guimarães Rosa. Consulta os teóricos de teatro mas não os acompanha,  "teórico sem prática  é muito chato.  Eu já desenvolvi minha teoria". E sobre o que lhe aborrece, ele diz: "Alguém que não sabe dizer – Ih, desculpa, eu errei". Acha muitos jovens mais velhos do que ele: "Digo sempre a eles: pára com essa velhice!".

Em determinado momento da nossa conversa, Amir revela: "Não me sinto tão especial, eu gosto do que faço e faço com atenção".

Da Paisagem 

Amir Haddad me recebeu para uma conversa que contou também com a participação do céu azul de um dia quente de verão carioca. Da varanda de sua casa, deslumbramos gozosamente a paisagem da Baía de Guanabara com o Morro do Pão de Açúcar ao fundo. 

O mar, o morro, o céu, inevitável a pergunta: Amir, como um grupo sobrevive por 25 anos nadando contra a maré? Ele responde: "Não sei explicar". Quem saberia? Para quê? A própria vida em seus acontecimentos fascinantes constrói qualquer biografia. Continua Amir: 

"Eu tenho a  sensação de que é muito melhor, mais fácil e possível fazer o que eu fiz do que não fazer. Eu teria sofrido muito mais, estaria hoje muito pior mentalmente, financeiramente. Eu fiz o que tinha que ser feito. Acho que é isso: nadar contra a maré para você se sentir uma pessoa útil. Acho que não fiz nada de extraordinário.  Eu nunca estacionei em vaga confortável, eu prefiro sempre entrar na apertada, gosto disso e sei que ao fazer isso estou aprendendo. Não que eu ache a miséria a maior das virtudes, mas a preocupação excessiva com conforto e facilidades é capaz de deixar alguém sem forças para realizar seus sonhos e fazer o que quer. Ninguém pode fazer nada sem se esforçar, sem acreditar e correr todos os riscos".

Para correr riscos é necessário ter coragem. Uma coragem cada vez mais rara hoje em dia.  Amir concorda e completa "tem que nadar contra a maré, conforme você diz. As braçadas são  muito mais difíceis, mas em muitos momentos eu relaxei, boiei e fui adiante". 

E em que consistiu esse "ir adiante"?  

"No meu trabalho em  teatro eu vejo que toquei num filão novo, importante, interessante, rico e que abre possibilidades enormes no teatro da dança, da festa. É  uma leitura mais otimista das possibilidades humanas,  não aceitando a  condenação que a nossa sociedade faz do ser humano. Todo ser humano pode ser artista. Escrevi um texto que diz isso".

Amir tem um falar solto e cativante, seu pensamento é coerente, claro e objetivo. Pergunto se ele escreve, responde: "Sempre escrevi pouco, agora estou escrevendo mais, porém não compulsivamente. Muita coisa se perde".

Talvez ele ainda descubra que é importante escrever suas memórias, crenças, desejos e 50 anos de carreira afirmando que a arte é a esperança possível. Pensamento este que encontra ecos em algumas angústias necessárias para qualquer artista. Diz Amir: 

"Eu acredito numa possibilidade melhor do ser humano. Acho que  é possível porque o mundo da arte me revela isso. Fora da  arte não há esperança. Em um mundo tão violento,  que papel nós temos? Artistas que andamos pelo planeta? Esse mundo está em guerra!!  E nós continuamos cantando, dançando e tocando tambor! Qual função temos, se é que há alguma? É uma questão quando pensamos essa vida de artista desapegada do sentido pragmático da burguesia capitalista protestante na qual tudo tem valor a partir do dinheiro. Há uma outra validade, um outro sentido. Uma coisa boa para humanidade tem que ser  boa para humanidade, não se pode  vender para sobreviver."

Você diz que o trabalho em arte não pode ser vendido, nesse sentido capitalista. O que se torna esse trabalho então? O que vejo são negociações tamanhas que só levam a frustração. Especialmente dentre os atores que trabalham de graça, frustrados, aborrecidos.  Amir, como um ator pode sobreviver somente fazendo a sua arte? 

"É uma questão bastante interessante e complicada. Eu observo uma modificação na vida cultural brasileira a partir do governo do presidente Lula. Percebo uma real preocupação com a diversidade cultural. Um ator que pensa em fazer a sua vida com um infantil aqui, um experimental ali, talvez um papel na TV amanhã,  e ver se alguém o descobre, é afetado por uma ideologia dolorosa que preside o desenvolvimento da sua cultura, porque essa ideologia promete uma coisa que não dá, não deu e não dará". 

Acredita ele que o governo Lula, e especialmente esse segundo mandato, significará uma mudança de possibilidades. Encarando a questão da diversidade cultural, estimulando diferentes manifestações, teremos tentativas importantes de inclusão. Amir avalia:  "Eles estão em um caminho de um projeto cultural para o Brasil e fazendo uma coisa que nem sei se  estão percebendo: pela primeira vez alguém está desmontando o projeto cultural montado pela ditadura".

A platéia da rua: política e ideologia  

E a platéia, Amir, como se comportou durante esses  25 anos de Tá na Rua?  

"Eu ficava estupefato, eu vi que a gente fazia teatro de rua na década de 1980 e era muito intensa a  relação com a platéia, era um povo animado, interessado, estava começando a abertura, já havia as primeiras greves, um renascimento do Brasil. O contato com  a população era muito estimulante, foi um momento em que eu cresci muito, estava adquirindo uma força fantástica com o contato da população  fazendo esse tipo de teatro que eu faço,  era muito prazeroso as emoções, descobertas, revelações, uma população nascendo de si mesma e dos anos da ditadura. Mas chegando na década de 1990, foi ficando cada vez mais difícil  ir para a rua fazer um teatro que discute, realidade,  ideologia,  cotidiano, relações. Começou a  ficar doloroso e cruel  demais mostrar uma situação para um povo que já tinha perdido novamente a esperança, pois já havia um neoliberalismo, as mudanças que foram prometidas não se realizaram. Depois  do segundo mandato do Fernando Henrique Cardoso,  já estava tudo mal outra vez, não dava para cutucar a ferida".

No governo Lula, Amir mudou sua temática em  espetáculos de rua, e explica a razão: 

"As coisas vêm melhorando. Quando se faz uma mudança política dessa natureza em que na primeira vez na história um operário, um ex-líder metalúrgico é eleito presidente, uma representação real do povo vai ao poder, tenho que mudar minha estratégia. Na época do Fernando Henrique eu fazia um espetáculo que era "Para que servem os pobres?", mostrando para que serve a pobreza, que jamais desapareceria porque os pobres tem  uma função primordial na sociedade rica e capitalista. Com a eleição do Lula,  não vou falar da função da pobreza, não tenho que fazer esse comentário irônico, porque sei que o Lula vai atacá-la, o meu discurso não seria auxiliar ao dele, ficaria contraditório. Quando um homem como Lula é eleito presidente, está na hora de falar de política e não mais de ideologia". 

A peça "Dar não dói, o que dói é resistir" é a produção do grupo Tá na Rua durante os primeiros anos do governo Lula. Amir diz que a peça alcançou um forte significado contemporâneo no final de 2005, com todos os acontecimentos a que assistimos na política brasileira. As mudanças no âmbito da política direcionam a relação do grupo com a sua platéia nas ruas: 

"A minha relação com  a platéia tem a ver com as mudanças políticas no país. Quando há esperança é muito bom fazer e quando não há esperança tem que se ter mais cuidado porque a dor pode ser muito grande e tirar o prazer da representação. E isso nega a eficácia política da linguagem que tem que ser prazerosa".

Dar não dói, o que dói é resistir  - Essa frase, quase um mantra, intitula o mais recente trabalho de Amir Haddad , em cartaz há 3 anos, junto ao grupo Tá na Rua. Mas qual foi a inspiração?  

Amir explica: "É uma  máxima  minha no meu trabalho com atores. O que é difícil no teatro não é a doação, é a resistência à doação. Toda atuação generosa não dói. É também a história da resistência dos artistas brasileiros mais sensíveis à ditadura militar".

O espetáculo é sobre o período da ditadura no Brasil. Tema que, segundo ele, é ignorado no teatro: "O teatro não toca nesse assunto, só agora é que começamos a falar disso e tem que se falar muito. Vou falar da ditadura e de como os artistas resistiram. Os lobos estão à espreita em pele de cordeiro, temos que  tomar cuidado".

Amir avalia seu trabalho como nada mais do que o da resistência constante: "A ditadura implantou uma rede de TV, uma censura rigorosa e desmontou o aparelho escolar do país, a universidade. Sem investigação, sem pesquisa, sem liberdade de expressão e com a TV massificando tudo, deu no que você viu acontecer no país nos últimos anos. Eu vivi isso e me imunizei da melhor maneira possível, fiz tudo para resistir. Meu trabalho é de resistência para me manter vivo nesse período de infestação virótica profunda na vida cultural brasileira". 

Amir fala com extrema contundência sobre  esse período. Nós, de uma geração posterior, não conseguimos avaliar a devastação que ocorreu posteriormente, e os frutos que ainda colhemos. Por mais que se estude, ainda há muito a percorrer. "Poucos sobreviveram", diz Amir, "Isso colocou os valores, as prioridades, os conceitos como celebridades, estrelas, modelos, dentro de um esquema de valor. Por isso  um jovem ator hoje  está mesmo fudido. Qual é o caminho, por onde ele anda? Do zero ao estrelato? Vai passar por onde? Tem vida cultural no país? Tem modificação? Tem acontecimento? Tem onde crescer? Ou se está atrás de uma carreira? Como se produz os craques do futebol? Nos milhares de jogos de futebol que tem no Brasil inteiro. Acredito que isso agora começa a acontecer no Brasil de novo. É evidente o fracasso das propostas neoliberais na constituição do país".

Mesmo sob a extrema dificuldade no mundo de hoje, Amir acredita na renovação e na mudança histórica: "Quando a situação se torna difícil surgem as vozes que acenam com uma possibilidade maior. Não temos aceitar as coisas assim, que não podem ser modificadas.  Podemos fazer essa história, nós a  fazemos. Estamos lutando pela inclusão, e há hoje uma movimentação diferente nesse sentido".

Conclui: "O que eu estou querendo dizer com isto tudo, é que se  nós  tivéssemos tido diferentes  políticas culturais, esse seu amigo sem emprego, desesperado, estaria numa situação melhor porque o modelo que ele estaria perseguindo seria muito mais possível e ele iria atingir a comunicação com sua comunidade, teria uma troca muito maior com seu meio social, iria se tornar um cidadão de melhor qualidade e poderíamos ter tido coisas muito interessantes porque o teatro brasileiro já produziu coisas muito interessantes. Atualmente é uma dificuldade enorme."

Há diferenciais? Ao certo, o diferencial não é o talento. O que poderia possibilitar um trabalho  se firmar e outro não?  

 "O funil é estreito, pouco espaço e muitas vezes não tem nada a ver com inteligência, não se sabe com o quê. Boas políticas culturais provocam a emergência de acontecimentos novos que vão fazer com que um ator se interesse em  algo a mais do que simplesmente fazer uma carreira falando qualquer texto, ganhando 15 reais e não escolhendo produção porque tem que trabalhar. E sem a menor noção de cidadania, alugando o recurso histriônico que ele tem, se ele tiver, da pior maneira. Provavelmente o  repertório que ele vai fazer não vai melhorar a qualidade do seu  trabalho, não vai acrescentar pois está todo mundo meio dentro dessa mediocridade. Eu acho que tem até lugar para um tipo de teatro assim se tivéssemos um grande teatro acontecendo. Mas nós ficamos com a periferia do entretenimento". 

Rio de Janeiro e a periferia do entretenimento  

Sobre o Rio de Janeiro, Amir chama atenção para as políticas públicas no âmbito da cultura nos últimos governos estadual e municipal: "Se os novos governos do Rio de Janeiro investirem em políticas culturais novas podemos fazer coisas fantásticas".

Sobre as razões para o Rio de Janeiro ter se transformado na "periferia do entretenimento", Amir explica: 

 "O Rio de Janeiro dá a impressão de uma estação de água que tem só espetáculo de musiquinha para as velhinhas assistirem. É esse o  repertório do Rio de Janeiro hoje. Aparece um ou outro espetáculo que vale  a pena, não estou generalizando, mas a tendência é essa,  e o pior, a inspiração, a  orientação é que seja assim. Há um pensamento moderno que quer transformar o Rio de Janeiro numa nova Broadway. Está cheio de musicalzinho vagabundo por aí, mas nada que inquiete ou desperte a atenção de alguém."

 É o que se chama de espetáculo comercial? 

 "São comerciais ou não.  Por exemplo, o espetáculo da Clarice Niskier [A Alma Imoral] teve resultado inesperado. É uma peça sobre intolerância, preconceito, como é essencial a desobediência. Jogou uma luz na mediocridade geral do repertório carioca.  Então é possível você fazer qualidade e ser comercial. Geralmente, se atribui a qualidade comercial a falta de qualidade artística,  eu acho um absurdo isso. Eu já vi qualidade artística  ser recompensada,  como é o caso da Clarice e do Pedro Cardoso no monólogo "Alto-falante". Já vi também  mediocridades serem colocadas nos altares. Não há uma verdade absoluta". 

Carnaval e teatro 

Quem conhece o teatro de rua do grupo Tá na Rua logo estabelece uma relação com o carnaval carioca. Para Amir foi inevitável inaugurar esse olhar e ver o  carnaval como espetáculo "popular, narrativo dramático, cantado e  dançado e  aberto a manifestação popular, que não se atrapalha com a vibração da platéia. É diferente do espetáculo fechado numa sala no qual a intervenção pode atrapalhar o rito".

Amir Haddad dirigiu 300 atores representando mendigos no carnaval da Escola de Samba  Beija-Flor de Nilópolis, em 1989,  "Ratos e Urubus larguem a minha fantasia", a convite do carnavalesco Joãozinho Trinta. Amir relembra: "Joãozinho estava fazendo uma  teatralização do carnaval, então quando ele me chamou eu achei que era a hora certa de mexer com isso, e numa estrutura grande, eu fazia com oito atores na rua, e fizemos com trezentos em um carro e  uma ala. Teve um impacto enorme. Os  atores ali estavam cantando, dançando, se divertindo mas fazendo teatro". 

O episódio foi polêmico e muito comentado na época, mas a escola perdeu o campeonato por um ponto e Amir considera isto um retrocesso:

"Acho que  aquilo não continuou naquela intensidade porque o Joãozinho perdeu o carnaval. Foi um desfile   poderoso, provocou uma comoção no país e foi derrotado por um enredo que homenageava Duque de Caxias. Isso demostra um certo conservadorismo difícil de remover na sociedade brasileira . Você rompe milhares de barreiras e quando chega lá no final  encontra um poderoso que fala: daqui você não passa! E no caso do Joãozinho foi um jurado de desfile de escola de samba." 

Mas a relação do diretor com o carnaval é mais profunda e começou antes do ano de 1989: 

"Minha ligação  tem a ver quando eu comecei a entender que tipo de trabalho eu fazia com meus atores,  a liberdade que eu  dou a eles, com música, dança e canto. A primeiras vezes que eu vim ao Rio, fui assistir a um  ensaio de escola de samba. Eu era diretor de teatro, e pra mim ensaio era ensaio. Fiquei lá,  todo mundo cantou e dançou a vontade. Eu paulista e diretor de teatro, pensei: isso é coisa de carioca, não teve ensaio. Quando voltei, vi a mesma coisa, e depois  entendi que o ensaio era aquilo, estava sendo ensaiado ali: o encontro, o samba, a dança, a disponibilidade, a celebração, o corpo, a sexualidade, estava tudo ali sendo manifestado. Esse era o ensaio e  isso preparava aquela comunidade para entrar na avenida de peito aberto. Hoje existem ensaios que negam a  origem popular do evento e eu detesto isso, quando um componente da escola de samba está fazendo tanta coisa no desfile que não tem tempo de cantar o samba enredo e nem sentimento para isso! Hoje as escolas estão assim!"

O contato com a escola de samba e com o carnaval fez Amir Haddad  entender seu trabalho por outro viés:

"Entendi que na Escola de Samba se ensaia conteúdo, não a forma. E percebi que eu fazia isso no meu trabalho. Eu não conseguia colocar um ator ensaiando, eu colocava na mão dele máscara, roupa, música, e mais um monte de ator em volta e deixava ele solto e livre. Vi que a manifestação é diferente da interpretação e que eu gostava muito mais de um ator trabalhando na manifestação do que na incorporação, isto é, fora do corpo no jogo, na brincadeira. Eu comecei a ter essa relação com o teatro a partir do carnaval"

Homenagem

Recentemente, duas homenagens marcaram a biografia de Amir Haddad. Em 2005, o diretor foi da Escola de Samba Unidos do Cabral, do bairro de Cachambi, Rio de Janeiro: 

"Adorei ser enredo e tive sorte porque eles fizeram um samba enredo de muito boa qualidade. Foi legal porque meus atores participaram de todas as etapas, eu desfilei, mas sou meio blasè..."

Em novembro de 2006, a condecoração pelo presidente da República com a Ordem do Mérito Cultural. 

Como foi a  cerimônia?

"Fiquei nervoso, e fiz um discurso longo demais, o suficiente para não deixar o Lula falar. Ele teve que cortar o discurso dele porque ia passar da hora. Foi péssimo! Mas eles gostaram.  O assessor do Lula depois me ligou pedindo cópia do discurso".

Luta  constante  

Homenagens à parte, a luta é constante. O diretor nunca teve patrocínio mais regular para suas produções, como acontece com alguns grupos de teatro, de dança e orquestras que são mantidos por grandes empresas como a Petrobrás e a Shell, através das Leis de Incentivo à Cultura. 

Desabafa: "Um apoio mais constante para produção de  espetáculos, eu nunca tive. Gostaria muito de ter, daria tranqüilidade para desenvolver alguns projetos".

Mas há apoios importantes. Dentre esses, Amir cita o Pontos de Cultura. Desde 2004, O Instituto Tá na Rua é um dos grupos do projeto do governo federal, que mapeou e escolheu grupos de teatro pelo Brasil para ministrar cursos de capacitação profissional na área da cultura à população de baixa renda.

Amir também destaca o FATE - Fundo Municipal de Apoio ao Teatro -  que possibilitou a encenação de "Dar não dói, o que dói é resistir": 

 "Nossa verba durou 3 anos, mesmo sendo pouco dinheiro. Muitos projetos contemplados pelo FATE foram leituras e desapareceram. Para fazer esse espetáculo não contamos com bilheteria, cada espetáculo é uma despesa. Mesmo assim, nosso dinheiro rendeu!".

O Instituto Tá na Rua tem também comodato com o governo do Estado que fornece um sobrado no bairro da Lapa, sede artística  do grupo. E o Ministério da Cultura cede uma sala no Teatro Glauce Rocha, onde funciona o escritório.  Para Amir, esses são apoios  "fundamentais e sem preço. O que fazemos é porque temos essa estrutura". 

Projetos Futuros 

Amir nos revela: "Vou fazer a supervisão de um espetáculo com a  Débora Bloch, é um texto de Dario Fo, depois com o Marcos Palmeira."

Supervisão? – pergunto com uma certa curiosidade - Amir, quem inventou isso? 
"Eu inventei para não ir a ensaio todo dia, muito chato. Deixa o ator trabalhar! Supervisão respeita o universo do ator. Isso é bom porque não tendo diretor todo tempo, sempre se conversa com o cenógrafo,  produtor... Se você  é bom, vai falar coisas importantes para aquelas pessoas trabalharem a semana inteira. Ator tem é que ter desejo e vontade de  trabalhar". 

Direção mesmo ele assumirá por completo em um Auto, "São Jorge contra os invasores da Lua", com o grupo Tá na Rua: "É um cordel. Vamos fazer dia 23 de abril de 2007, na Lapa,  dia de São Jorge. O ano começa com nosso bloco no carnaval e depois São Jorge. Gosto de fazer espetáculos nas efemérides, como na Idade Média".

Despedida  

Ao final, dou de presente um quadro que retrata o poeta Manuel Bandeira em um momento íntimo de leitura, na dedicatória, o verso do poeta: "Eu não sei dançar/ Uns tomam éter outros cocaína/ Eu tomo alegria! / Eis por que vim assistir a este baile da terça-feira gorda". É, Bandeira, Amir veio...  E ele diz: "Adorei os versos".
 




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