AS FEBRES E AS PERGUNTAS





O Folhetinista manda avisar a seus parcos leitores que sumiu porque esteve terrivelmente mal. Não. Nada a ver com as vicissitudes de uma vida VOLUNTÁRIA, entre livros, papéis, tinteiros e penas. Esteve mal mesmo fisicamente. Começou com uma febre alta, e tudo aquilo que se sente quando se tem uma febre alta, que se desenvolveu para uma sinusite com dores horríveis nos dois ouvidos. Agora as dores passaram mas ficou o catarro... Parece um verso... " AS DORES PASSAM MAS FICA O CATARRO" - porém onde não devia estar, no canal do ouvido e de repente o Folhetinista se viu surdo dos dois ouvidos, ouvindo zumbido e seu próprio coração batendo incessantemente.

Os médicos insistem na penca de remédios, analgésicos e antibióticos, nos horários certos e dizem para aguardar que o catarro vai descer, vai sair, vai sair, vai sair, ou pela boca ou pelo nariz, mas vai sair, aguardar com paciência. Se não melhorar em uma semana, fazer raio x e procurar o médico de novo. O Folhetinista vê o mar de sua janela e o desejo é de se jogar num mergulho e deixar a água salgada e Yemanjá arrancar tudo que tem que sair lá de dentro, onde não deve estar. Diz ele: “...e quando ando (você já andou e ouviu de dentro seu próprio passo? os meio surdos ouvem...) ou quando como é um som enorme também, ou seja, ouço pouco do mundo aqui fora, mas muito dos sons de dentro, quem sabe eu me ouça melhor assim e me encontre.” Mas é um inferno e o Folhetinista está é muito chateado, no meio de tantos remédios, e os médicos dizem que tem que esperar e esperar que vai descer, o catarro, esperar uma semana, faltam 5 dias para uma semana, e ainda tem o natal e mais outras coisas que não deixam o Folhetinista isolar-se na sua surdez. Pelo menos a torneira e o chuveiro pingando já não o irritam tanto. Espera ele logo voltar a ser ele.
Enquanto isso, ele está lendo e vendo filmes. Lê "D Pedro II" de José Murilo de Carvalho e ontem viu "Amadeus", o maravilhoso filme sobre Mozart. Escreveu um poema: as dores passam mas fica o catarro bate bate bate lateja os ouvidos se ouve zumbis, zumbidos calores dessa tua mão no meu peito dessa mudez na nudez de noites silenciosas e dores dores dores maria das dores é meu nome bati na janela dei dois toques agora só ouço o que digo. Como diz sempre: as dores passam mas fica o catarro que impede o Folhetinista de ouvir. E o que ele não quer ouvir? É secreto demais.

Lembra-se ele de um livro: "O Livro Disso" de Georg Groddeck. Desde 1895, Groddeck praticava a psicossomática, acreditando que havia inventado a psicanálise. Mas reconheceu a precedência de Freud, e com ele iniciou uma troca de idéias, entre 1917 e 1925. "O Livro disso" é composto por uma série de cartas imaginárias a uma amiga não menos fictícia, em que o autor desvenda sua temática sobre o “Isso” que nos constitui. E é uma leitura muito ofegante e daquelas que não conseguimos parar. Bem, o catarro no ouvido do Folhetinista foi mesmo ele que levou para lá. Tão estranho, nem havia muita tosse no período da febre. Como se livra disso? Desse disso que se foge? Desse Isso que nos constitui? Desse Isso que constitui todos os catarros? São perguntas que o Folhetinista se faz atualmente para alcançar a cura. E há vantagens nessa meia surdez. É ótima forma de não ouvir quem fala demais. Ou de falar com quem não se quer falar. E de ouvir os sons internos do corpo. E de ser anti-social no Natal e no reveillon sem ser tachado de anti-social ou "anti- festa- de- alegria- no- fim- de- ano". Por que essa obrigação de ser feliz de repente só porque é dezembro e porque de repente se pode ganhar um abono de natal do governo ou o décimo terceiro? Agora alguns fragmentos de Georg Groddeck, em "O livro disso".Tradução de José Teixeira Coelho Netto.São Paulo: Perspectiva, 1988.

Acredito que o homem é vivido por algo desconhecido. Existe nele um “Isso”, uma espécie de fenômeno que comanda tudo que ele faz e tudo que lhe acontece. A frase “Eu vivo...” é verdadeira apenas em parte; ela expressa apenas uma pequena parte dessa verdade fundamental: o ser humano é vivido pelo Isso. É desse Isso que falarei em minhas cartas. Você concorda? 

Quando estou triste, meu coração invoca a mãe e não a encontra. Devo odiar Deus e o Universo por causa disso? Mais vale rir de si mesmo, desse estado de infantilismo do qual nunca conseguimos sair. Pois raramente alguém se torna adulto e, mesmo assim, apenas superficialmente. Brincamos de adulto assim como uma criança brinca de ser uma pessoa crescida. Para o Isso, não existe uma idade para as coisas e o Isso é a nossa própria vida. Como é difícil falar do Isso! Tange-se uma corda qualquer e, ao invés de um som, produzem-se vários, cujas sonoridades se misturam e se calam, a não ser que provoquem outras, sempre novas, até que se produza uma cacofonia incrível em que se perde todo discurso. Pode acreditar, não é possível falar do inconsciente; só se podem balbuciar algumas coisas a respeito dele ou, melhor, indicar bem baixinho isto ou aquilo a fim de que o bando infernal do universo inconsciente não surja das profundezas dando berros discordantes. Somos todos sádicos. Somos todos masoquistas; não há ninguém que, por natureza, não deseje sofrer e fazer sofrer: Eros nos obriga a isso.

Não é verdade que a mulher tenha uma sensibilidade aguda, que ela despreza e odeia a rudeza. Ela só detesta tudo isso nos outros. Ela ornamenta sua própria rudeza com o lindo nome de amor materno.

Quanto mais profundo for o conflito íntimo do ser humano, mais graves serão as doenças, pois elas representam simbolicamente o conflito. Se uma leve indisposição não consegue resolver o conflito ou recalcá-lo, o Isso utilizará os grandes recursos: a febre, que obriga a mulher a ficar de cama, uma pneumonia, ou uma fratura da perna, que a imobiliza, diminuindo assim a esfera das percepções que exasperam seus desejos; o desmaio, que elimina qualquer sensação; a doença crônica — a paralisia, a consunção, câncer — que mina lentamente as forças; e finalmente, a morte. Só morre aquele que quer morrer, aquele para quem a vida tornou-se insuportável.

O Eu não é absolutamente o Eu; é uma forma constantemente mutante através da qual se manifesta o Isso e o sentimento do Eu é uma artimanha do Isso para desorientar o ser humano no que diz respeito ao conhecimento de si mesmo, para facilitar-lhe as mentiras que conta a si mesmo e fazer dele um instrumento mais dócil da vida.


É isso. O Folhetim de hoje termina por aqui. Cheio de paciência e perguntas.

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