TROMPE-L'OEIL


Suzana comia um sanduíche natural de atum na lanchonete da escola quando a vi pela primeira vez. Usava saia de prega azul marinho e a blusa branca do uniforme, sapato boneca preto com meia branca e cabelo negro em duas tranças. O suco de melancia entornou por sobre a mesa, ela cheia de livros, meio atrapalhada e apressada para comer. Não éramos da mesma turma, apesar do sanduíche de tuna que eu também comia religiosamente todos os dias naquela mesma cantina e sem nos vermos, sem sabermos um da existência espantosa do outro, até que aquele suco de melancia fez uma lambança na mesa que dividíamos em comum, eu numa ponta, ela noutra. Aí eu fui ajudá-la, ela muito simpática e constrangida começou a limpar a mesa com o guardanapo de papel e a imagem que se fez era nojenta, e ao mesmo tempo sensual, aquele guardanapo ensopado, se desmanchando no líquido rosa espesso e as mãos de Suzana no meio daquilo tudo, organizando uma dança.

Fui chamar o moço da cantina que logo chegou com um pano absorvente. Peguei seus livros e fomos andando pelo corredor pois ela queria ir ao banheiro para se limpar.

Era hora da aula. Dias e dias a espiava na cantina. E ela me via. Era como uma coisa que valesse a pena o dia. Não sentávamos mais longe na mesma mesa. Assim foi indo até, vocês sabem, até que a beijei com toda minha energia e força e sagacidade... e proteção. Sim, um beijo apaixonado também é proteção. Um beijo inteiro e apaixonado.

Claro que nenhuma história é de amor puro, sem brigas, mágoas, sim, vivemos todos os enredos dessa história. Aliás, fomos os dois fazer História na mesma universidade. Fizemos política estudantil, fomos de partido, sempre iguais ideologicamente. Éramos muito parecidos apesar das diferenças. Discutíamos sobre meio ambiente, política externa, políticas internas, depois seguimos carreira acadêmica, no magistério público, até que de repente 30 anos de suco de melancia esparramado na mesa. Assim, 30 anos.

Muita coisa havia mudado, na política, na vida, na tecnologia, nos bebês que nascem cada vez mais inteligentes. Não, não tivemos filhos. Isso não teria lógica na nossa casa, não, crianças não. Acho que de comum acordo sabíamos que não conseguiríamos. Talvez por preguiça, medo, talvez, não sei porque na verdade não tivemos filhos, apesar de 30 anos, não houve tempo.

Tudo havia mudado. O olho de Suzana já não brilhava quando me via. O corpo já não pulsava, já não se arrepiava como antes. Eu continuava a lhe escrever poemas. Virei poeta, com uma musa viva de carne e corpo ao meu lado. Eu era o romântico, o lírico. Publiquei quatro livros, ganhei dois prêmios, um dos quais em dinheiro.

Imagem do corpo, quiçá da armadura
que sustenta esse frágil peito
onde sentinelas os equívocos.


Desconfio de toda miragem
como sombra na caverna
cuja linguagem não supõe.


Suzana, o que fazes na sombra?
Venha, Suzana,
Deusa, musa, mãe, puta,
deixe essa dolência no teu sexo.


Venha, Suzana,
santa e mansa em preto e branco
ou ausente de luz.


Não me jure amores,
não confesse saudades,
alivia-me como sou bicho homem


fantasia-me como sou poeta.
Espreita-me, espera-me,
Aqueça-me, esfrega-me,


Suzana, depois encante-se
e finja esquecer.

- Não dá mais, Jorge. - Ela me disse, assim, sem mais nem menos, numa manhã de segunda feira, num café da manhã ordinário de uma segunda feira, depois de um domingo alegre, na varanda da nossa casa colorida numa segunda feira.

- E eu estou logo te dizendo cedo, numa segunda de muito trabalho para você não passar o dia pensando nisso, e eu também. Eu quero ir embora.

- E você acha que a revolução de 30 vai ser assunto mais importante da minha vida nessa segunda feira? Eu vou ter que dar hoje uma aula sobre a revolução de 30...

- E eu sobre a segunda guerra mundial.

- Porque, como, quando, quem... - eu perguntei.

- Não há nada, ninguém, nenhures, alhures – ela respondeu.

Suzana. Suzana. Suzana. Como é que se escreve agora?

Passei a vê-la em todos os lugares, virava a esquina, a moça de costas atravessando a rua, é ela ou não é? Não era. Na casa que foi nossa, ela entrava por todas as portas e janelas. Um amigo psiquiatra me disse – vai levar dois anos. E eu disse – Não me venha com o que você estudou nos livros!! E ele: não, amigo, também tive uma Suzana em minha vida.

Dito e feito. Durou dois anos. A cada dia, muito lentamente Suzana ia se soltando de mim, até que hoje, hoje ela é um eu-lírico.

Não tenho muito tempo mas queria te dizer que passei por aqui, Suzana. Então esse texto vai ser curto e breve porque o que mais se pode fazer da vida quando se tem asas de cera? Depois daquilo, você não tem ideia, nenhuma ideia grave e monossilábica que seja. Meus livros na estante nada mais me diziam, eram só um trompe-l'oeil. Então, eu passei a ouvir rádio todo dia, rádio de notícia, só notícia, sem música. Eu me tornei plateia dos eventos do mundo, sem a menor interferência no decorrer dos fatos importantes que viram notícia. As guerras, as mortes, os assassinatos passionais, a queda da bolsa, o metrô de Nova Iorque, o novo imponente prédio em Dubai. As minivacas é que vão salvar o planeta... enquanto isso os fitoplanctons estão morrendo... e tem gente que trabalha procurando a partícula divina e outro conseguiu filmar a morte de uma estrela... e hoje as vítimas são culpadas e os criminosos são vítimas... todos estamos numa louca mutação silenciosa e irreversível... e ainda estamos preocupados com a arte, com o beijo na boca, com os dentes brancos e hálito puro, com o amor e com as pequenas revoluções... Ouvia as notícias do rádio, e tentava me levantar da poltrona, eu no fundo do meu quarto, naquela poltroninha de dois lugares, de couro gasto, onde você também esteve por várias e apaixonantes vezes enquanto eu a beijava, e amava você, Suzana, na poltroninha. Ouvir rádio era um ritual que me deixava acordado, não queria dormir, tinha medo de não acordar e eu queria acordar. Mas também pensava, o que eu tenho a ver com o decorrer das notícias? Nada me toca, nada. Não há notícia da minha vida nessa estação de rádio de fundo de quarto, nessa poltroninha de couro gasto que herdei da minha avó.

Suzana, queria que você tivesse me ensinado coisas, uma língua, uma partitura, um verso em dodecassilabo. Queria que você tivesse me explicado um "enjambement", por exemplo. E emendasse me ensinando coisas inúteis como quantos grão de arroz existem em um pacote de um quilo. Queria que você tivesse me ajudado a arrumar meus livros na estante, discutindo comigo critérios de organização, ordem alfabética ou aleatória por assunto. Peter Burke ao lado de Le Goff?  Shakespeare dá para ficar ao lado de Machado? Coisas assim, prosaicas e ridículas.

Não foi um grande amor, foi um grande fracasso. Mas o verbo anuncia todo o desejo ainda, por isso lhe falo. As pessoas são difíceis mas ninguém quer dormir sozinho. Mas não, você quis. Caiu fora, partiu, desistiu. Seria mais fácil se algum outro homem a tivesse levado de mim, assim eu teria alguém para culpar e odiar. Mas não. Você se foi sozinha.

E eu fiquei no Porto, sentado e acordado na minha poltrona de couro, acenando para navios, estacionados e vazios.

Texto e imagem do topo:  Andrea Carvalho Stark, junho 2010.

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