MITO
A água faz o movimento parecer lento, lentíssimo. Em contraste, há uma rapidez com que eles cruzam, de um extremo a outro, o largo espaço envidraçado transparente. Azul, lilás, laranja, branco prateado, preto com matiz laranja. As caudas se abrem rendadas e vagarosas e em furta cor. As bocas freneticamente se abrem, parecem agonizar com falta de ar, precedendo aquele momento em que todos se vão, e seus corpos imóveis sobem à superfície. É quando aparece uma moça com uma rede os recolhe,para jogá-los no vaso sanitário, sem ritual. Vezes há em que parecem agonizar com a perda da voz. Querem falar, falar, falar, mas ninguém os ouve. Mas sob a água tudo parece delicado, até os que matam os outros, comendo aos poucos os olhos e a cauda rendada dos mais fracos. Há uma concha se abrindo e fechando ritmada, como se fosse um tempo de música. Uma bolha se forma e corre para cima, e some. De repente, sem conseguirmos definir nenhum motivo, simplesmente sem nada acontecer, todos se dirigem para o lado esquerdo e lá se concentram em um grupo único, amontoados e naquele abrir e fechar de bocas e dança de caudas frenéticas obedecem a uma coreografia ou a alguma liderança de sua própria natureza. Será que falam entre si, sobre si, sobre mim? A moça de vestido vermelho e colar de flor com brilhantes que, sentada em uma mesa, espera alguém chegar. O que pensa a moça bonita de olho azul? - um pergunta ao outro. Daqui ela parece tão lenta e delicada – observam. Quem ela espera? – indaga um terceiro.
Começaria dizendo: Obrigada por ter vindo. Mas esperaria vê-lo entrar, sentar, sem ser amorosa demais porque a ocasião não permitia. Olharia seu rosto inteiro, tenso, os sulcos, as marcas, a quentura, talvez lhe tocasse de leve os lábios, tanto tempo. Um telefonema no meio da madrugada, a mesa reservada no meio da madrugada, anos sem vê-la, o que ela queria agora? Conversar pois seria muito importante nesse momento da minha vida, para entender o que acontece. Parecia muito aflita. E ele iria. Afinal, todos nós precisamos de um tiro de misericórdia, no centro, quando é cedo demais. Ele também precisava. Ela diria: Obrigada por ter vindo. Ele responderia: O que você quer?
Ela falaria direto ou comentaria sobre o aquário e o cardápio para quebrar aquele clima. Talvez começasse pela carta de vinhos.
Ou se alguma coragem lhe surgisse, fosse mesmo diretamente ao ponto do telefonema no meio da madrugada. Um desabafo ou retomada, não havia uma terceira intenção. Eu preciso saber se você me amou um dia. O que você sofreu e se sofreu e como. E o que são essas histórias entre homens e mulheres que se encontram no furtivo das horas. Quero lhe falar do que eu passei também, esse buraco no chão e eu tendo que caminhar, caindo, levantando, a poeira no olho, o olho vermelho toda manhã. Sim, as manhãs são sempre mais difíceis do que as noites, as manhãs trazem esse compromisso com o futuro, o que fazer hoje se ele não está aqui? Quando chega a noite, o tempo já é perdido. Eu... e quando se chega nessa idade, sem vaidade da vida em que estou, a única coisa que se quer saber é se, apesar da solidão, alguém amou a gente um dia, porque só eu sei de mim. Você me jurava devoção, me escrevia poemas e músicas e depois... bateu o telefone na minha cara quando eu mais precisei de você. Ele responderia: Risoto de camarão e vinho tinto?
Pediriam o cardápio da noite. Comeriam, falariam frivolidades e gargalhadas. Nada do que ela ensaiara seria possível agora, perante aquele homem mito e memória na história da sua vida. Foi você que não sabia do meu limite – ela diria. Continuando: Eu nunca pedi pra você me falar de amor, não esperava isso, não pretendia, era uma aventura que desviou o seu jeito e se perdeu. A gente sempre acha que pode controlar tudo, mas não. Ele agora tentaria beijá-la, enfiando os seus dedos no meio de suas pernas, não permita, não permita, não permita. Ela, depois de tanto tempo, tão bonita, tão serena, tão segura. Ele a desejava naquele momento e era só. E ela era só. Depois talvez dissesse: Há coisas mais práticas na vida. E ela diria: Práticas? Mas o que você... Ele interrompe: Mais vinho?
O seu relógio já vencia as quatro horas, logo amanheceria. Fazia quatro horas a espera. Ela decide finalizar por sua própria conta o encontro. Pede um vinho, sem nenhum acompanhamento. Não pede o risoto. Não haverá risotos, decide. Foda-se, Marcos. Toma as cinco taças do vinho. Foda-se, Marcos. Pede a conta. Foda-se, Marcos. Obrigada por ter vindo. Foda-se, Marcos. E em um único lance de olhar para os peixes, somente um laranja com riscos pretos parecia comer uma pedra, plantada no chão.
Começaria dizendo: Obrigada por ter vindo. Mas esperaria vê-lo entrar, sentar, sem ser amorosa demais porque a ocasião não permitia. Olharia seu rosto inteiro, tenso, os sulcos, as marcas, a quentura, talvez lhe tocasse de leve os lábios, tanto tempo. Um telefonema no meio da madrugada, a mesa reservada no meio da madrugada, anos sem vê-la, o que ela queria agora? Conversar pois seria muito importante nesse momento da minha vida, para entender o que acontece. Parecia muito aflita. E ele iria. Afinal, todos nós precisamos de um tiro de misericórdia, no centro, quando é cedo demais. Ele também precisava. Ela diria: Obrigada por ter vindo. Ele responderia: O que você quer?
Ela falaria direto ou comentaria sobre o aquário e o cardápio para quebrar aquele clima. Talvez começasse pela carta de vinhos.
Ou se alguma coragem lhe surgisse, fosse mesmo diretamente ao ponto do telefonema no meio da madrugada. Um desabafo ou retomada, não havia uma terceira intenção. Eu preciso saber se você me amou um dia. O que você sofreu e se sofreu e como. E o que são essas histórias entre homens e mulheres que se encontram no furtivo das horas. Quero lhe falar do que eu passei também, esse buraco no chão e eu tendo que caminhar, caindo, levantando, a poeira no olho, o olho vermelho toda manhã. Sim, as manhãs são sempre mais difíceis do que as noites, as manhãs trazem esse compromisso com o futuro, o que fazer hoje se ele não está aqui? Quando chega a noite, o tempo já é perdido. Eu... e quando se chega nessa idade, sem vaidade da vida em que estou, a única coisa que se quer saber é se, apesar da solidão, alguém amou a gente um dia, porque só eu sei de mim. Você me jurava devoção, me escrevia poemas e músicas e depois... bateu o telefone na minha cara quando eu mais precisei de você. Ele responderia: Risoto de camarão e vinho tinto?
Pediriam o cardápio da noite. Comeriam, falariam frivolidades e gargalhadas. Nada do que ela ensaiara seria possível agora, perante aquele homem mito e memória na história da sua vida. Foi você que não sabia do meu limite – ela diria. Continuando: Eu nunca pedi pra você me falar de amor, não esperava isso, não pretendia, era uma aventura que desviou o seu jeito e se perdeu. A gente sempre acha que pode controlar tudo, mas não. Ele agora tentaria beijá-la, enfiando os seus dedos no meio de suas pernas, não permita, não permita, não permita. Ela, depois de tanto tempo, tão bonita, tão serena, tão segura. Ele a desejava naquele momento e era só. E ela era só. Depois talvez dissesse: Há coisas mais práticas na vida. E ela diria: Práticas? Mas o que você... Ele interrompe: Mais vinho?
O seu relógio já vencia as quatro horas, logo amanheceria. Fazia quatro horas a espera. Ela decide finalizar por sua própria conta o encontro. Pede um vinho, sem nenhum acompanhamento. Não pede o risoto. Não haverá risotos, decide. Foda-se, Marcos. Toma as cinco taças do vinho. Foda-se, Marcos. Pede a conta. Foda-se, Marcos. Obrigada por ter vindo. Foda-se, Marcos. E em um único lance de olhar para os peixes, somente um laranja com riscos pretos parecia comer uma pedra, plantada no chão.