UM DOMINGO A UM REAL NO MUNICIPAL


Planejei acordar às seis horas, sabia que quanto mais cedo melhor. Mas o celular debaixo do travesseiro tocou  às 6.40, mais os minutos de preguiça, saio de casa às oito. Chego à Cinelandia e encontro ela - a fila - dobrando o teatro. Fico. Vestido preto até o pé e sapato alto, não era sapato social, mas o vestido era comprido e ao meu redor gente de todas as firulas, ninguém de vestidão. Me acho ridícula. Levanto o rosto, espremo a barriga, espalmo os ombros e pronto.

Um minuto e já há mil pessoas atrás de mim, nem vejo onde ela termina - a fila. E crio existencialista essa frase de caminhão: o que define nossa vida é um minuto. Na minha frente uma família – a mãe bonita, o pai calado, careca e barbudo, três filhas adolescentes, duas parecem gêmeas, às quais se juntam mais duas amigas adolescentes, e todas falam, falam, falam, riem, riem, riem... Uma das que parece gêmea reclama: "Vale a pena? Não vale a pena! Acordar cedo, se vestir, sair, mofar 2 horas em pé, pra quê?"

O pai lendo O Globo. Eu pensando: vou pedir emprestado. Peço e eles só me dão o primeiro caderno, que traço em dois minutos.

Resolvo puxar papo, digo para a mãe: acho que a gente não vai entrar... A mulher: Deus me livre, não me diga isso, eu nunca venho, hoje que elas me tiraram da cama, eu não vou voltar, entro de qualquer jeito.

Atrás de mim, um casal e mais uma amiga. Todos evangélicos. O rapaz se chama Andre e vestia uma blusa social amarela. Descubro que são evangélicos pois logo na conversa deles eu ouço na narrativa a palavra "pastor". Andre carrega uma bolsa de plástico de jornaleiro com O Globo inteirinho. Fico paquerando o jornal. Andre parece um rapaz sério, é evangélico, está com a namorada, fico esperando uma oportunidade.

Já faz uma hora e dez minutos em pé. Não resisto. Vou arrumar um lugar para sentar. Numa marquise ao meu lado, várias crianças enfileiradas, sentadas. Me junto a elas. Sento mesmo sem jornal. A mãe das adolescentes: quer um jornal para sentar? Eu: Não, obrigada. A mulher vai e arranca a capa da Revista de Domingo, e eu tive que aceitar. Obrigada. Sorriso e tasco a minha bunda na cara da modelo loira e da família em férias num resort em Búzios. Tento apoiar as costas, não dá. Estico as pernas, o vestido arrasta no chão, não, meu vestido não, amasso a saia do vestido entre as pernas, fica igual a uma calça, mas o salto do sapato me impede de acomodar o pé com o mínimo de conforto. Dobro as pernas, pego o vestido e cubro-as. Fico assim feito um ovo preto numa calçada da Rio Branco. Estico as pernas de novo, as crianças estão agitadas, correndo, e penso: vão pisar na minha perna, quebrar meu osso e eu saio daqui direto pro hospital... melhor recolhê-las.

Vejo que Andre está sentado perto de mim, o jornal inteiro feito uma almofada. Eu peço: você poderia me emprestar o seu jornal? Ele: para sentar ou para ler? Eu: para ler, para sentar eu já tenho, aponto. Ele levanta-se, puxa o saco almofada posicionado embaixo da bunda e me dá: eu mexo procurando o segundo caderno, não acho, pego a revista mesmo. Obrigada.
Ele dá aquela levantada, acomoda o saco no mesmo lugar, e continua a ler. Eu começo: Sofia Loren vai posar quase nua, aos 61 anos, para um calendário; podemos ficar com manchas na pele por causa da intolerância misteriosa a certos alimentos e penso qual será a minha? Leio a matéria toda, procurando minha vida ali. Chego a linda crônica de Marta Medeiros, e descubro que tenho também minha síndrome de Estocolmo em relação a vários afetos. Leio a coluna do Professor  Pasquale sobre colocação pronominal e também sobre os melhores jeans para os corpos ficarem melhores, fico procurando minhas formas ali e meus pronomes também. Vejo a matéria da revelação dos novos estilistas, dou de cara com Isabela Capeto, gosto das suas roupas, e lembro que no quarto do filho de uma minha amiga tem um quadro dela. Na foto, gosto só do vestido. Começa a chover. A revista do Andre começa a marcar de pinguinhos. Penso: continuo a ler ou devolvo a revista? Sei lá o que pensa Andre! Decido continuar a leitura. Já são 9.20, não sei se já abriu o teatro.

A fila começa a andar. Estou tão cansada. Quero colo e café. Vontade de ir embora. E penso aquilo que todo mundo pensa nessas horas: já cheguei até aqui, agora vou ficar, pagar pra ver no que vai dar... E lembro que é esta a segunda vez que tento trazer minha filha bailarina para assistir ao balé O Lago dos Cisnes, que ela já conhece em dvd e da aula de balé. Fico lembrando como ela ficou contente quando disse que iria levá-la. Tentei comprar ingresso para outro dia, mas não havia mais.

Começa a aparecer monte de vendedor, todos com o mesmo bordão:"Três horas não é mole não, tem que ter uma balinha... " E todos fazem quase em ritmo orquestral aquele barulhinho horrível chacoalhado das balinhas nas suas caixinhas de acrílico... irritante... Aparece aquele cara que grita o primeiro "Bravo" em todos os concertos, distribui umas folhas de sua propaganda para deputado. E diz: eu sou fulano e tal, já fui vereador, não fui reeleito, por culpa de vocês eleitores que não sabem escolher, escolheram o Maluf, primeiro lugar em São Paulo, o maior ladrão do país, votem em mim... votem!! E estaciona na minha frente com um papel, ninguém pega, eu fico constrangida e pego, sem graça.

Aparece também uma mulher, pede dinheiro para o Andre, insiste e insiste, eu quase rezando – dá logo umas moedas, André! - estava certa de que ela pediria a mim depois, a mulher dizia: andei a fila toda e só arrumei 30 centavos, preciso comer alguma coisa. Finalmente ouço André, bom evangélico, tilintar na mão da mulher algumas moedinhas. Ufa! A essa hora já havia devolvido a revista a ele,dizendo: tem umas marcas de pingos da chuva. E ele, tudo bem, como bom evangélico.

A chuva aumenta. A fila começa a andar. Eu não consigo mais escrever, está molhando meu caderninho e a caneta não pega. A namorada de Andre abre um imenso guarda-chuva e eu, simpática. Sorriso: posso pegar uma carona? Me aproximo deles e fico dividindo cara de pau o espaço do casal. Continuo a escrever. Aparece uma mulher velhinha vendendo empada, eu amo empada, 50 centavos. Tasco duas, uma de frango outra de calabresa. A velhinha não disse o tal do bordão ridículo, acho que é por isso que comprei, o seu era: se não gostar, não precisa pagar.

Já é possível ver o telão na calçada ao lado do teatro, “para não decepcionar as pessoas que não vão conseguir entrar” - explica sabiamente André e ainda completa: “admiro muito essas pessoas que estão mais no final da fila, é muita fé, não vão entrar mesmo”. A chuva cai forte. As crianças todas ensacadas e tudo fica colorido com aquelas capinhas de chuva ambulantes em cores florescentes.

Paramos frente ao cartaz com a programação do Teatro. Uma ópera, orquestra, outro ballet, a ópera "O cientista Osvaldo Cruz" e André comenta: “Não sabia que Osvaldo Cruz tinha escrito uma ópera!”

Ouvimos alguém dizer: "Acabaram-se os ingressos". O pai da família se revolta: quem é esse para dizer? E sai para conferir. Volta logo. E confirma: "Não há mais ingressos. Ou é telão ou casa!" A família em coro sem demora: “Casa!” A fila se dissipa aos poucos, a chuva aumenta, meus braços gelados e fome e pé doendo e as costas também. Não vejo mais André. Chego à porta do teatro e ouço uma confusão, alguém grita: “Tinha que fazer no Maracanã esse balé! Vem gente de muito longe e não consegue entrar. É "sacanage" de vocês!"

Peraí... é balé ou Fla x Flu? Peraí... Por que não há mais temporadas de balé clássico no Rio de Janeiro? Peraí... Por que só existe companhia de balé clássico no Teatro Municipal do Rio de Janeiro??!! Falta de público? Acho que não. Ah... "sacanage" mesmo é fazer um domingo a um real obrigando os artistas a ganharem um real pois o governo não repõe o valor restante do ingresso. Promoção política populista usando o trabalho alheio é refresco. Mas sobre isso nada ouço, ninguém sabe, ninguém comenta, o povo quer é entrar no teatro.

Ouço vaias, um grupo enorme gritando, dois carros de polícia, vários policiais na porta, fora os seguranças e uma mulher do teatro com um alto-falante. A esta cena somam-se algumas bandeiras do Brasil, três, acho, que estavam na Cinelândia e na calçada do teatro por alguma propaganda política próxima.  Parece cena de cinema.

Já são 10.48. Lembro de ligar para casa. Vou andando em direção ao Odeon, onde pretendia tomar um café e descansar um pouco. No caminho, dou de cara com a filhota. Mamãe tentou, não conseguiu, olha quanta gente não conseguiu também... Carinha triste que não quero nem olhar, dou beijo, saímos de mão dada. Pegamos um taxi que segue, finalmente, casa. Casa e dor de cabeça, cansada.

Foi esse o Domingo de meu lago seco dos cisnes mudos que não valeu um real, mas sim, essa crônica.

É, André, tem que ter muita fé.

A C STARK, 2006

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