CRÍVEL

Ela observa, sob nenhum risco de emoção, o pedaço de alimento sobre a mesa que pensa sobre a mesa e fala sobre a mesa palavras e palavras em versos. Ela observa e só, a moça sentada, prestes a fagocitá-la crua sem temor de sua cor vermelha, do perigo de sua natureza nua, ela pensa e pensa e pensa. Jamais imaginariam quanto pensamento naquele volume, um pacote vermelho sobre a mesa deixado não sei por quem que ela observa com fome e roncos na barriga e imaginando receita, temperos, tempuras a sua massa também puta e ela ali.

Depois de pensar, ela vê com certa violência uma raiva da vida. Uma raiva divina pois a raiva do sagrado-vida é como a maçã também vermelha e branca do paraíso, daquele momento primeiro certeiro. A água vermelha do pacote desce em três gotas pela mesa e desce e cai sobre ela, seu colo fértil e inútil, e ela observa e observa sem fazer nenhum grito, nenhum movimento pois de nada adiantaria um gesto de repulsa. Era como algo ali nascendo, um feto, um verbo, algo sangrando ali nascendo, descendo dela.

Ela fica ali, as horas passam, a forma fétida vence e ela ali.

Ela observa sem nenhum risco temendo, o pedaço de alimento sobre a mesa que desdiz mais do que diz, sobre a mesa fala com ela sobre a mesa palavras e palavras em versos e versos de amor.

Ela ouve e observa ali, carente pela vida.


Foto e Motivo: Micheline Torres - by Enora

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