MUITOS ATOS EM TORQUATO
Minha namorada tem segredos
tem nos olhos mil brinquedos
de magoar o meu amor.
Um poeta que cantou os segredos dos olhos de sua namorada, desfolhou a bandeira e iniciou a manhã tropical, em poesia, canção e prosa, ainda espanta com seus espantos, ainda.
Um poeta desfolha a bandeira,
e a manhã tropical se inicia.
resplandente cadente fagueira
num calor girassol com alegria,
na geléia geral brasileira
que o jornal do brasil anuncia.
Torquato Neto (1944-1972) deve ser reverenciado como um dos maiores nomes da literatura dos anos de 1960. Suas letras continuam sendo ouvidas. Sua poesia, faca amolada que fere o "coro dos contentes", ainda atrai e desperta. Seu trabalho jornalístico na coluna Geléia Geral, publicada no Jornal Última Hora entre 1971 e 1972, é um boletim-reflexo das inquietações artísticas de uma época. Sua morte, um suicídio, trancado no banheiro, gás ligado, dia de seu aniversário de 28 anos, é emblemática e fecha o ciclo certeiro de internações psiquiátricas, depressões, enfim, frutos da proximidade afiada com a palavra, a fatal proximidade que só os verdadeiros artistas ousam.
Eis que esse anjo me disse
apertando minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes.
No Brasil dos anos de 1960, sob a ditadura e a conseqüente violenta repressão, quando a arte lutava para não sucumbir, Torquato Neto fez parte do grupo de resistência conhecido como "Tropicalismo", junto a nomes como Glauber Rocha, Caetano Veloso, José Celso Martinez Correa, Gilberto Gil, Rogério Duarte. Era considerado, por muitos, o cérebro do movimento.
Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos.
É o risco, é estar sempre a perigo e sem medo,
é inventar o perigo
e estar sempre recriando dificuldades
pelo menos maiores,
é destruir a linguagem e explodir com ela.
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Torno a repetir: ai, ai, ai.
Torno a repetir: meu amor: ai, ai, ai.
Onde é que você mora,
em que cidade escondida,
em que muda, qual Tijuca?
Lá também quero morar.
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Chegue e me diga: eu te amo mesmo assim.
Eu devo responder igual, como sempre.
Chegue e me aperte na parede,
grite comigo: Babilônia.
E depois se esqueça de mim e continue.
Vamos transar, vamos pintar, vamos gritar.
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E fique sabendo: quem não se arrisca, não pode berrar.
Riscos e riscos, arriscar-se, o salto no escuro. Torquato Neto viveu na raiz todos esses enredos. Enredos dos atores, músicos, poetas, dos artistas que chegam "perto de".
Agora
Eu sempre quis ser contente
E pode ser que eu já seja
E é Torquato que está inteiro na música lamento Cajuína, de Caetano Veloso. Música de despedida, um hino, uma modinha, o que será essa cançaõ? Uma homenagem ao pai do poeta. Conta-se que Caetano e outros que seguiram a Teresina para o derradeiro adeus a Torquato, foram destratados pelo pai do poeta. E depois o pai, arrependido, foi a rodoviária se encontrar com os moços com um pedido de desculpas simbolizado na cajuína que levava.
Não sei se a história foi mesmo assim, mas assim se conta, e assim se ouve também na canção.
Muitos atos para um só alguém. Intacta retina, qualquer dia sou eu quem volto pra Teresina.
Livros essenciais
Torquatália (dois volumes), de Paulo Roberto Pires, Editora Rocco.
Pra mim chega – a biografia de Torquato Neto, de Toninho Vaz, Editora Casa Amarela.
As citações que entrecortam esse texto são de Torquato Neto, e foram retiradas da coletânea "Torquato Neto, últimos dias de paupéria", organização de Ana Maria Duarte e Wally Salomão, editora Max Limonad, 1982.
©2010 Andréa Carvalho Stark