Assim se vão soldando os anéis de um século
Mary Casatt_The Loge_1880 |
Meu tempo é sempre muito escasso para os delírios. Tenho ido ao teatro e lido muito também, mas sempre fica aquela sensação de que algo estou deixando de fazer.
Tenho perseguido Machado de Assis nas diversas obras que se chamam de "completas" e cheias de critérios que muitas vezes não completam nunca a própria obra.
Li recentemente a história de Carlos Gomes, que eu não conhecia por detalhes. Não que haja diretas relações com a biografia de Candiani, mas há nas biografias (as bem escritas!) um sabor de um tempo e das outras pessoas que viveram uma época. Mas fui ler mesmo porque estive em Paquetá recentemente e lá tem um busto do compositor. É numa pracinha meio bucólica, de onde se avista a Baía. Fiquei intrigada em saber se haveria alguma passagem de Carlos Gomes pela Ilha fluminense... Não há, o busto era só homenagem dos admiradores, como diz a plaquinha grudada no pedestal.
Carlos Gomes morreu amargurado e achava-se esquecido... diferente do que escreveu Machado de Assis em crônica na época dizendo que o compositor morrera em "plena glória". Não a glória que o celebrizou e que se faria justa sempre. Instalou-se no Pará, mas gostaria de poder estar em sua terra natal, Campinas. Ninguém quer morrer longe do chão onde se pisou quando criança... Fiquei pensando nessa enorme constelação de artistas que vivem um triunfo e morrem no total ostracismo, driblando dificuldades financeiras dentre outras mazelas: de Vasques, João Caetano, Candiani, Marcos Portugal até às Irmâs Batista...
Reproduzo aqui a crônica de Machado de Assis publicada em 20 de setembro de 1892 - onde se encontram Candiani e Carlos Gomes e mais esse belíssimo trecho: "Aí estou eu a repetir cousas que sabeis – uns por as haverdes lido, outros por vós lembrardes delas; mas é que há certas memórias que são como pedaços da gente, que não podemos tocar sem algum gozo e dor, mistura de que se fazem saudades ". E Machado ainda saúda o telegrafo como hoje nós saudamos a Internet. Vamos a crônica inteira:
[20setembro]
TODA ESTA SEMANA foi feita pelo telégrafo. Sem essa invenção, que põe o nosso século tão longe daqueles em que as notícias tinham de correr os riscos das tormentas e vir devagar como o tempo anda para os curiosos, sem essa invenção esta semana viveria do que lhe desse a cidade. Certamente, uma boa cidade como a nossa não deixa os filhos sem pão; fato ou boato, eles teriam algo que debicar. Mas, enfim, o telégrafo incumbiu-se do banquete.
A maior das notícias para nós, a única nacional, não preciso dizer que é a morte de Carlos Gomes. O telégrafo no-la deu, tão pronto se fecharam os olhos do artista e deu mais a notícia do efeito produzido em todo aquele povo do Pará, desde o chefe do Estado até o mais singelo cidadão. A triste nova era esperada – não sei se piedosamente desejada. Correu aos outros Estados, ao de S. Paulo, à velha cidade de Campinas. A terra de Carlos Gomes deseja possuir os restos queridos de seu filho, e os pede; São Paulo transmite o desejo ao Pará, que promete devolvê-los. Não atenteis somente para a linguagem dos dous Estados, um dos quais reconhece implicitamente ao outro o direito de guardar Carlos Gomes, pois que ele aí morreu, e o outro acha justo restituí-lo aquele onde ele viu a luz. Atentai, mais que tudo, para esse sentimento de unidade nacional. que a política pode alterar ou afrouxar, mas que a arte afirma e confirma, sem restrição de espécie alguma sem desacordos, sem contrastes de opinião. A dor aqui é brasileira. Quando se fez a eleição do presidente da República, o Pará deu o voto a um filho seu, certo embora de que lhe não caberia o governo da União; divergiu de S.Paulo. A república da arte é anterior às nossas constituições superior às nossas competências. O que o Pará fez pelo ilustre paulista mostra a todos nós que há um só paraense e um só paulista que é este Brasil.
Agora que ele é morto, em plena glória, acode-me aquela noite da primeira representação da Joana de Flandres, e a ovação que lhe fizeram os rapazes do tempo, acompanhados de alguns homens maduros, certamente, mas os principais eram rapazes, que são sempre os clarins do entusiasmo. Ia à frente de todos Salvador de Mendonça, que era o profeta daquele caipira de gênio. Vínhamos da Ópera Nacional, uma instituição que durou pouco e foi muito criticada, mas que, se mereceu acaso o que se disse dela, tudo haverá resgatado por haver aberto as portas ao jovem maestro de Campinas. Tinha uma subvenção à Ópera Nacional; dava-nos partituras italianas e zarzuelas, vertidas em português, e compunha-se de senhoras que não duvidavam passar da sociedade ao palco, para auxiliar aquela obra. Cantava o fundador, D. José Amat, cantava o Ribas, cantavam outros. Nem foi só Carlos Gomes que ali ensaiou os primeiros vôos; outros o fizeram também, ainda que só ele pôde dar o surto grande e arrojado...
Aí estou eu a repetir cousas que sabeis – uns por as haverdes lido, outros por vós lembrardes delas; mas é que há certas memórias que são como pedaços da gente, que não podemos tocar sem algum gozo e dor, mistura de que se fazem saudades. Aquela noite acabou por uma aurora, que foi dar em outro dia, claro como o da véspera, ou mais claro talvez; e porque esse dia se fechou em noite, novamente se abriu em madrugada o sol, tudo com uma uniformidade de pasmar.
Afinal tudo passa, e só a terra é firme: é um velho estribilho do Eclesiastes, de que os rapazes mofam, com muita razão, pois ninguém é rapaz senão para ler e viver o Cântico dos Cânticos, em que tudo é eterno. Também nós ríamos muito dos que então recordavam o tempo em que foram cavalos da Candiani, e riam então dos que falavam de outras festas do tempo de Pedro I. É assim que se vão soldando os anéis de um século.
Ao contrário, a história parece querer dessoldar alguns dos seus anéis e deitá-los ao mar – ao Mar Negro, se é certo o que nos anuncia o mesmo telégrafo, portador de boas e más novas. Não trato da deposição do sultão, conquanto o espetáculo deva ser interessante; eu, se dependesse de uma subscrição universal, daria meu óbulo para vê-lo realizado com todas as cerimônias, tal qual o Doente imaginário. A diferença entre a peça francesa e a peça turca é que o homem doente parece doente deveras, — semilouco, dizem os telegramas. As deposições da nossa terra não digo que sejam chochas, mas são lúgubres de simplicidade. O teatro de Sergipe está agora alugado para essa espécie de mágica; não há quinze dias deu espetáculo, e já anuncia (ao dizer do País) nova representação. As mágicas desse teatro pequeno, mas elegante, compõem-se em geral de duas partes – uma que é propriamente a deposição, outra que é a reposição. Poucos personagens: o deposto, o substituto, coros de amigos. Ao fundo a cidade em festa. Este ceticismo de Aracaju, rasgando as luvas com aplausos a ambos os tenores. Não revela da parte daquela capital a firmeza necessária de opinião. Tudo, porém, acharia compensação na majestade do espetáculo; infelizmente este é pobre e simples; meia dúzia de homens saem de uma porta, entram por outra, e está acabado. É uma empresa de poucos meios.
Que abismo entre Aracaju e Istambul! Que diferença entre as duas portas sergipenses e a Sublime Porta! Lá são as potências que depõem, presididas pelo pontífice do islamismo, tudo abençoado por Alá e por Maomé, que é profeta de Alá. Nas ruas sangue, muito sangue derramado, sangue de ódio e de fanatismo. Ouvem-se rugidos da Ilha de Creta e da Macedônia. Na platéia o mundo inteiro. Mas o principal não é isso. O principal espetáculo, o espetáculo único, é o desmembramento da Turquia, também notificado pelo telégrafo. Esse é que, se se fizer, dará a esse século um ocaso muito parecido com a aurora. Os alfaiates levaram muito tempo a medir e cortar a bela fazenda turca para compor o terno que a civilização ocidental tem de vestir; e por que as medidas políticas diferem das comuns, vê-lo-emos talvez brigar por dous centímetros. As tesouras brandidas; e, primeiro que se acomodem, haverá muito olho furado. O desfecho é previsto; alguém ficará com um pano de menos, mas a Turquia estará acabada, e a história terá dessoldado alguns elos que já andavam frouxos, se é que isto não é continuar a mesma cadeia.
Pode suceder que nada haja, assim como não voará o castelo do Balmoral, com a rainha Vitória e o czar Nicolau dentro. Esta outra comunicação telegráfica desde logo me pareceu fantástica; cheira a imaginação de repórter ou de chancelaria. Nem é crível que tal tragédia se represente às barbas da sombra Shakespeare, sem este seja consultado quando menos para lhe pôr a poesia e os relatórios policiais não têm.
Enfim, melhor que atentados, deposições e desmembramentos, é a notícia que nos trouxe o telégrafo, ainda o telégrafo, sempre o telégrafo. Porfírio Diaz abriu o congresso mexicano, apresentando-lhe a mensagem em que anunciava a redução dos impostos. Estas duas palavras raramente andam juntas; saudemos tão doce consórcio. Só um amor verdadeiro as poderia unir. Que tenham muitos filhos é o meu mais ardente desejo.
O que eu gosto mesmo é de ler o Seu Joaquim.