ANTONIO MARIA - DOIS FABULOSOS TEXTOS

Um pouco de Antônio Maria hoje. Tão esquecido e ignorado. E tão maravilhoso.


"Amanhece em Copacabana, e estamos todos cansados.Todos, no mesmo banco de praia. Todos, que somos eu, meus olhos, meus braços e minhas pernas, meu pensamento e minha vontade. As pessoas e as coisas começam a movimentar-se. A moça feia, O homem de roupão, que desce à praia e faz ginástica sueca, o bêbado que vem caminhando com a lapela suja de sangue, ônibus de colegiais e, lá dentro os nossos filhos com cara de sono. As pessoas e as coisas começam a movimentar-se. O banhista gordo e de pernas brancas vai ao mar cedinho porque as pessoas de manhã são poucas e enfrentam sem receio seu aspecto. Um automóvel deixou uma mulher à porta do prédio de apartamentos. Todas as ordens foram traídas, todas as promessas foram desfeitas. Aqui sentado neste banco de praia eu sou um vegetal!

Estou reduzido aos meus instintos, estou preso aos meus sentidos, pouco a pouco foram reduzindo meu direito à minha humanidade. Tiraram meu semelhante de junto de mim, limitaram o uso do meu cérebro às operações mais simples, arrancaram a minha carta de cidadania, extinguiram a minha capacidade de influir, diminuíram o meu cérebro, dissolveram minha consciência. Agora, eu apenas faço parte da paisagem quase morta. Sou uma planta encostada aqui neste banco de praia. Quando haverá outro dia esperança, quando? Já começo a sentir cansaço, depois vem o desgosto, depois o desespero de tudo isto."

ANTONIO MARIA, texto que fez parte do espetáculo   Brasileiro: profissão esperança.

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Considerações sobre o Sono


A pessoa que dorme está inteiramente só. Quando o homem dorme, o seu rosto se desmarca de todas as tramas e de todos os desgostos. Nada enternece mais uma mulher que o rosto do amante, dormindo. Ela se debruça sobre a face do amado e descobre que eram simples palavras todas as valentias que ele lhe vinha dizendo ou dando a entender. É quando a gente se parece menos com os mortos... é quando se está dormindo. Quanto mais pobre mais comovente o ser humano que dorme. No sono, a imobilidade das pessoas boas e confiantes é sempre desarrumada. Gente má dorme em posição de sentido. Cada travesseiro tem um lugar e uma importância definidos na vigência do sono. Não há nenhum abandono casual, nas pernas, nos braços ou na cabeça de quem dorme, porque o corpo realiza, desde que haja espaço, sua única posição realmente confortável. Experimente descobrir na mulher que dorme a seu lado, um ser infinitamente decente, muito além de sua capacidade de fazer-lhe uma razoável justiça. Quanta luz nos corpos despidos das mulheres claras! Seria uma demasia de requinte ou de louvação, fazê-las dormir sobre lençóis negros? A mais leve carícia de sua mão sobre o corpo da amada que dorme poderá quebrar a solidão do sono e a tranqüilidade da carne já não seria completa (contente-se em enternecer-se, sem tocá-la). Se for preciso despertá-la, que seja com ruídos aparentemente casuais. Ah, que intensos ciúmes, no passado e no futuro, sobre a nudez da amada que dorme! Só você a viu, só você a verá assim tão bela! Nas mulheres que dormem vestidas há sempre, por menor que seja, um sentimento de desconfiança. A amada tem sob os cílios a sombra suave das nuvens. Seu sossego é o de quem vai ser flor, após o último vício e a última esperança. Um homem e uma mulher jamais deveriam dormir ao mesmo tempo, embora invariavelmente juntos, para que não perdessem, um no outro, o primeiro carinho de que desperta. Mas, já que é isso impossível, que ao menos chova, a noite inteira, sobre os telhados dos amantes.


Rio, 17/1/1956, ANTONIO MARIA. Texto extraído do livro "O Jornal de Antônio Maria", 
Editora Saga - Rio de Janeiro, 1968, pág. 42.

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