IL CAZZO DEL MAESTRO
Nas minhas andanças pelos passos de AUGUSTA CANDIANI no Brasil, estive na Escola de Música da UFRJ e fiz descobertas incríveis em sua Biblioteca Alberto Nepomuceno. Uma dessas, que não cabe no meu livro, não ouso guardar no meu escaninho.
Encontra-se na Biblioteca Alberto Nepomuceno (da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro) uma relíquia dentre muitas relíquias históricas. Mas nenhuma que seja tão deliciosa e inédita como essa. Um desabafo que evidencia a relação conflituosa entre músicos e maestros bem antes das brigas de Callas e Toscanini...
No Arquivo do Theatro São Pedro de Alcântara, encontramos a partitura completa da obra de F. Chiaromonte, “Armando Il Gondoliero”.
Na parte referente aos baixos e violoncelos, mais especificamente em sua última parte, meio às linhas vazias da última folha de partitura, encontramos esse desabafo: “Questo cazzo deve andare in cullo del maestro Chiaromonte. Genova, 1850.” Com o desenho bem indicativo do que a frase quer dizer em bom português... com "il cullo" e "il cazzo" claramente ilustrados, se é que vocês me entendem, sim, vocês me entendem...
Quem haveria de ter escrito na nobre língua de Dante e Petrarca essas chulas palavras de desagravo ao Maestro? O que teria feito o tal Maestro Chiaromonte para com seus músicos, irritando tanto esse baixista ou violoncelista que teve esse caderno de partitura em mãos?
O maestro em uma orquestra, em termos mais gerais, é o responsável por direcionar os músicos a seguir o tempo, a dinâmica e o andamento indicado na partitura. É considerado o diretor do grupo, impondo na maioria das vezes a sua "interpretação" à obra musical. Daí diversas divergências com os músicos da orquestra. Qual orquestra AMA seu maestro? Difícil... Suporta-se com devoção, assim como Machado de Assis diz suportar a cólica do próximo... (“Suporta-se com devoção a cólica do próximo”, diz o escritor em seu "Memórias Póstumas de Brás Cubas"). E essas historinhas de conflito entre maestros e músicos são antologias saborosíssimas... Uma orquestra não é uma orquestra se não houver ao menos uma divergência desse valor.
O maestro como conhecemos hoje surgiu no Romantismo. Na Itália, depois dos anos de 1850. Nessa época, a Alemanha já tinha os seus. Era o primeiro violinista - o spalla - ou algum instrumentista de sopro ou o próprio compositor, o responsável por direcionar a orquestra.
E quem foi esse Maestro cujo "cullo" entrou para a posteridade?
Encontrei um texto, em italiano, sobre o compositor "F. Chiaromonte" e um verbete no livro "Operisti minori dell'800 italiano", de Corrado Ambìverique que nos fornece alguma informação biográfica.
Francesco Chiaromonte nasceu em 1809, estudou em Palermo, depois se transferiu para Napoles onde foi aluno de Donizetti. Começou sua carreira em 1840, como tenor, depois passou a diretor de orquestra em diversos teatros de Nápoles. No ano de 1848 foi preso por participar dos movimentos pela unificação italiana. Depois se transferiu para Bruxelas onde foi mestre de canto até 1886, quando faleceu.
Sua produção operística se iniciou em 1844 com “Fenicia”. Seguiram “Caterina di cleves” e “Armando, Il Gondoliere” de 1851 (que acreditamos ser a mesma produzida pela Typographia de Gandra & Filhos, do Porto, em 1855, sob o título "O gondoleiro: tragedia lyrica, em 1 prologo, e 3 actos") , considerada sua melhor ópera, um típico drama passional, ultra romântico, ambientado em Veneza. Enredo calcado no amor, na morte, no duelo entre a tirania e a liberdade. Um melodrama concebido segundo as regras e temas da época. Depois de "Armando", Chiaromonte ainda compôs “Le nozze di Messina”, “Ines di Mendoza”, “Giovanna di Castiglia”.
Há o registro de 18 de março de 1852 da estreia no Teatro alla Fenice, de Veneza , da ópera "Le nozze di Messina", tragédia lirica em 4 atos, 22 cenas, de autoria do maestro, sobre libreto de Giovanni Emanuele Bidera, com direção de Gaetano Mares e com a soprano Katinka Evers (Fiammetta), a mezzosoprano Palmira Prinetti (Psiche), o tenor Lodovico Graziani (Alfredo), os baixos Filippo Coletti (Valmiro) e Agostino Rodas (Roberto). Há ainda na ficha técnica do espetáculo: maestro "concertatore" Carlo Ercole Bosoni; maestro do coro, Luigi Carcano, 1° violino, Luigi Balestra, cenografia de Giuseppe Bertoja. Mas por esses anos de 1850 o compositor amargava um exílio na capital belga e jamais retornaria a seu país natal.
Não encontrei nenhuma referência à passagem de Chiaromonte ou a encenação dessa sua ópera no Brasil.
Acredito que a partitura de “Armando, il gondoliero” chegou aqui como resultado do intenso trânsito de músicos que havia entre o Brasil e a Itália no século XIX. A importância que os Imperadores davam à música (lembramos que a biblioteca de partituras dos Bourbon e Bragança só era superada pela do Vaticano) beneficiava os espetáculos de ópera com financiamentos e valor. Músicos italianos chegavam aos montes, muitos fugidos dos conflitos ocasionados pela unificação italiana. Antes mesmo da chegada de Augusta Candiani ao Brasil em 1843, já havia um contigente interessante de músicos italianos no Rio de Janeiro.
Talvez algum músico tenha trazido a partitura para o Brasil e não acredito que essa ópera tenha sido montada aqui em 1851 ou depois. Em 1850, o teatro da ópera entra num momento crítico muito delicado, tendo que enfrentar cancelamentos de subsídios, e ainda um surto de febre amarela que dizimou muitos dos artistas italianos que aqui chegaram. Nos períodos posteriores, também não encontramos nenhuma referência nos jornais da época sobre a apresentação dessa obra ou de qualquer outra desse maestro Chiaromonte, pelo menos no maior centro artístico da Corte, a cidade do Rio de Janeiro.
A partitura faz parte hoje do valioso acervo do Teatro São Pedro de Alcântara e deve ter vindo mesmo na bagagem de algum músico ou cantor ou cantora que trabalhou essa obra na Itália, talvez na Veneza de 1851.
De qualquer forma, o desabafo do músico está eternizado. Agora registrado publicamente aqui.
Quem diria que “il cazzo del maestro” iria tão longe assim.
Bonjour!
Encontra-se na Biblioteca Alberto Nepomuceno (da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro) uma relíquia dentre muitas relíquias históricas. Mas nenhuma que seja tão deliciosa e inédita como essa. Um desabafo que evidencia a relação conflituosa entre músicos e maestros bem antes das brigas de Callas e Toscanini...
No Arquivo do Theatro São Pedro de Alcântara, encontramos a partitura completa da obra de F. Chiaromonte, “Armando Il Gondoliero”.
Na parte referente aos baixos e violoncelos, mais especificamente em sua última parte, meio às linhas vazias da última folha de partitura, encontramos esse desabafo: “Questo cazzo deve andare in cullo del maestro Chiaromonte. Genova, 1850.” Com o desenho bem indicativo do que a frase quer dizer em bom português... com "il cullo" e "il cazzo" claramente ilustrados, se é que vocês me entendem, sim, vocês me entendem...
Quem haveria de ter escrito na nobre língua de Dante e Petrarca essas chulas palavras de desagravo ao Maestro? O que teria feito o tal Maestro Chiaromonte para com seus músicos, irritando tanto esse baixista ou violoncelista que teve esse caderno de partitura em mãos?
O maestro em uma orquestra, em termos mais gerais, é o responsável por direcionar os músicos a seguir o tempo, a dinâmica e o andamento indicado na partitura. É considerado o diretor do grupo, impondo na maioria das vezes a sua "interpretação" à obra musical. Daí diversas divergências com os músicos da orquestra. Qual orquestra AMA seu maestro? Difícil... Suporta-se com devoção, assim como Machado de Assis diz suportar a cólica do próximo... (“Suporta-se com devoção a cólica do próximo”, diz o escritor em seu "Memórias Póstumas de Brás Cubas"). E essas historinhas de conflito entre maestros e músicos são antologias saborosíssimas... Uma orquestra não é uma orquestra se não houver ao menos uma divergência desse valor.
O maestro como conhecemos hoje surgiu no Romantismo. Na Itália, depois dos anos de 1850. Nessa época, a Alemanha já tinha os seus. Era o primeiro violinista - o spalla - ou algum instrumentista de sopro ou o próprio compositor, o responsável por direcionar a orquestra.
E quem foi esse Maestro cujo "cullo" entrou para a posteridade?
Encontrei um texto, em italiano, sobre o compositor "F. Chiaromonte" e um verbete no livro "Operisti minori dell'800 italiano", de Corrado Ambìverique que nos fornece alguma informação biográfica.
Francesco Chiaromonte nasceu em 1809, estudou em Palermo, depois se transferiu para Napoles onde foi aluno de Donizetti. Começou sua carreira em 1840, como tenor, depois passou a diretor de orquestra em diversos teatros de Nápoles. No ano de 1848 foi preso por participar dos movimentos pela unificação italiana. Depois se transferiu para Bruxelas onde foi mestre de canto até 1886, quando faleceu.
Sua produção operística se iniciou em 1844 com “Fenicia”. Seguiram “Caterina di cleves” e “Armando, Il Gondoliere” de 1851 (que acreditamos ser a mesma produzida pela Typographia de Gandra & Filhos, do Porto, em 1855, sob o título "O gondoleiro: tragedia lyrica, em 1 prologo, e 3 actos") , considerada sua melhor ópera, um típico drama passional, ultra romântico, ambientado em Veneza. Enredo calcado no amor, na morte, no duelo entre a tirania e a liberdade. Um melodrama concebido segundo as regras e temas da época. Depois de "Armando", Chiaromonte ainda compôs “Le nozze di Messina”, “Ines di Mendoza”, “Giovanna di Castiglia”.
Há o registro de 18 de março de 1852 da estreia no Teatro alla Fenice, de Veneza , da ópera "Le nozze di Messina", tragédia lirica em 4 atos, 22 cenas, de autoria do maestro, sobre libreto de Giovanni Emanuele Bidera, com direção de Gaetano Mares e com a soprano Katinka Evers (Fiammetta), a mezzosoprano Palmira Prinetti (Psiche), o tenor Lodovico Graziani (Alfredo), os baixos Filippo Coletti (Valmiro) e Agostino Rodas (Roberto). Há ainda na ficha técnica do espetáculo: maestro "concertatore" Carlo Ercole Bosoni; maestro do coro, Luigi Carcano, 1° violino, Luigi Balestra, cenografia de Giuseppe Bertoja. Mas por esses anos de 1850 o compositor amargava um exílio na capital belga e jamais retornaria a seu país natal.
Não encontrei nenhuma referência à passagem de Chiaromonte ou a encenação dessa sua ópera no Brasil.
Acredito que a partitura de “Armando, il gondoliero” chegou aqui como resultado do intenso trânsito de músicos que havia entre o Brasil e a Itália no século XIX. A importância que os Imperadores davam à música (lembramos que a biblioteca de partituras dos Bourbon e Bragança só era superada pela do Vaticano) beneficiava os espetáculos de ópera com financiamentos e valor. Músicos italianos chegavam aos montes, muitos fugidos dos conflitos ocasionados pela unificação italiana. Antes mesmo da chegada de Augusta Candiani ao Brasil em 1843, já havia um contigente interessante de músicos italianos no Rio de Janeiro.
Talvez algum músico tenha trazido a partitura para o Brasil e não acredito que essa ópera tenha sido montada aqui em 1851 ou depois. Em 1850, o teatro da ópera entra num momento crítico muito delicado, tendo que enfrentar cancelamentos de subsídios, e ainda um surto de febre amarela que dizimou muitos dos artistas italianos que aqui chegaram. Nos períodos posteriores, também não encontramos nenhuma referência nos jornais da época sobre a apresentação dessa obra ou de qualquer outra desse maestro Chiaromonte, pelo menos no maior centro artístico da Corte, a cidade do Rio de Janeiro.
A partitura faz parte hoje do valioso acervo do Teatro São Pedro de Alcântara e deve ter vindo mesmo na bagagem de algum músico ou cantor ou cantora que trabalhou essa obra na Itália, talvez na Veneza de 1851.
De qualquer forma, o desabafo do músico está eternizado. Agora registrado publicamente aqui.
Quem diria que “il cazzo del maestro” iria tão longe assim.
Bonjour!