GNOSIOLOGIA
“Em todo, mais que o desejo, há o desejo de destruição” - foi o que ela disse depois de andar em círculos em círculos, disse desta metáfora redonda redonda redonda que se quebra, se parte, em duas incongruentes ao menor toque que não se juntam por mais que se busque as brisas de sua madrugada, as poeiras dos espelhos quebrados [a todo momento]. E disse - comentando - por que você deixa a boneca de louça se quebrar? Deixe-a guardada na caixa protetora para quando a primavera...
Assim balbuciou em leves versos a Pitonisa dos Delphos entre fogo e arte que saem de sua boca milagre. Foi então que a moça, malditou ao estilo do mestre: "Devo também um galo a Esculápio" sabendo-se que não só o seu desejo era o da ciência perante às virtudes: "Jamais reconhecerás a ti mesmo", dizia ela, "se acreditares que há uma lei própria natural". Mas ele dizia que há uma lei além da escolha humana, a lei natural, não é possível negociá-la, há que se render, não há luta possível, é entregar-se ou morrer. Então será Deus e divino segui-la, pensava a moça.
"Minha mãe também operava partos do corpo. Eu, os do destino. O espírito deve parir sua vontade suprema, mas eu não estarei aqui para ajudá-la. Eu falo do que te melhor convém, acredite"- ameaçava a Oráculo. Mas ela não absorvia mais a sintaxe da Pitonisa, suas metáforas em parábolas, estava tudo se tornando, retornando, rodando em círculos novamente. E ela não entendia.
Queria sair, não podia. Caía, levantar-se não conseguia. Agonia, agonia, agonia, três vezes agonia, em três longas noites e em três longos dias na caverna esfumaçada.
Efeito da fera que libertara e agora não sabia o que fazer, a fera já tomava todo o corpo. Vamos comer um galo com molho de ervas em homenagem a Esculápio... pensou. Hei de convidá-lo... pensava... não, não hei de convidá-lo... e ...
Era um tipo valoroso e raro de amor. Decidiu então absorver ávida a Cicuta. Passou a sentir seu efeito paulatinamente como um líquido -- mar espumante e leitoso entrando e descendo.
Passou a mão pelos seus contornos começando pelo rosto, faces, olhos e rubros cabelos e descendo peitos, barrigas, ossos, quadris até parar no sexo, seus entornos e contornos vendo se ainda viviam. Caía vagarosamente no chão frio da caverna, a Pitonisa observava, com olhos de quem nada vê, a moça se contorcendo e regozijava-se: " A de alma deveras ansiosa houve por bem calar-se no exato momento em que eu cuspiria verdades e fogo pelas ventas".
A moça continuava a cair vagorosa, quase desmanchando-se, já deitada totalmente, fronte para cima, mão no sexo que nos entornos balbuciava antes do negro da noite chegar de vez aos seus pensamentos, balbuciou algumas palavras no seu grego também negro, língua morta viva, e disse: “Meu querido, põe de lado as tuas tragédias e dize-me apenas o teu improviso, de que deveras gosto e até prefiro. Confesso-te que nada há de virtual nesta relação quase ritual minha contigo, pois sei de tua voz, de teu gesto, de teu humor e de teu sabor pelas vias da memória que em mim reside. Se não crês no que te escrevo, amado amigo, eu te garanto e peço, acredita-me, pois sinceramente te digo que tudo está em paz e que durmo tranqüilo e penso em ti com muita estima e o melhor apreço. Bem sabes não raro seres tu arrebatado no afeto, quiçá temerário devido aos fluidos de tua idade, porém um dia, se houver sabedoria, a polis inteira laurear-te-á por isto, librando-te a alma na harmonia que melhor mereces por tua intensidade, e que a noite nos seja breve.”
E depois não se viu mais nada, nem a moça nem a Pitonisa, nem a caverna. Também não se entendia nenhuma língua, todas gregas, todas negras, todas mortas e vivas, no descompasso dos entendimentos. Só sobraram metáforas e parábolas.
Enfim, a Pitonisa se tornou um mito e a moça também.
Foi assim que a língua sagrada das previsões e dos oráculos deixou de ser secreta e varreu - de vez - a boca dos homens.
E um dia a moça acordou, relembrou os mitos, viu que a cicuta ainda ardia, mas riu. Riu de si mesma e dos Deuses, sabendo que por isso jamais seria perdoada.
a c stark2010